Tratamento contra Alzheimer evoluiu de sanar sintomas a evitar progressão da doença

Dificuldade em distinguir causas e consequências, no entanto, impede avanço maior de pesquisas

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São Paulo

O hiato de quase duas décadas entre a aprovação das duas últimas drogas contra o Alzheimer pela FDA, agência americana que regula alimentos e medicamentos, é evidência de que o tratamento dessa doença neurológica não é nada trivial.

Uma das características mais marcantes do Alzheimer é o acúmulo de proteínas no cérebro, que formam uma espécie de grumo ou teia. O novo fármaco, o aducanumabe, aprovado nesta semana, age evitando a deposição dessas proteínas, mantendo o cérebro livre desses corpos estranhos.

Para se ter uma dimensão do ineditismo, segundo uma pesquisa na revista Alzheimer Research & Therapy, no período entre 2002 e 2012 houve 413 estudos clínicos, sendo que 83 deles estavam na fase 3, a última antes do lançamento, e 78% eram apoiados pela indústria farmacêutica. A taxa de sucesso no período foi de apenas 0,4%.

Em um teste clínico do aducanumabe foi mostrado um retardo da progressão do Alzheimer em casos leves, daí o voto de confiança da FDA, mas a fabricante, a Biogen, ainda deve continuar os estudos para reduzir a incerteza a respeito dessa eficácia.

Por mais que faça sentido a remoção das proteínas amiloides, não existe uma correspondência biunívoca entre as placas e os sintomas da doença. A deposição pode começar bem antes de qualquer sinal de mudança na cognição ou na memória, por exemplo.

É possível que esse acúmulo não seja necessariamente a causa do problema, mas apenas mais uma das consequências. Os mecanismos que provocam a doença (ou, no jargão médico, a fisiopatologia) são complexos e ainda falta muito para serem completamente decifrados.

Novo tratamento pode ser aprovado para o alzheimer em 2021 - Victor Moussa - stock.adobe.com

Por exemplo, na edição desta semana da revista Science Advances foi publicado um estudo que mostrou, dentro das placas amiloides de cérebros de pessoas que morreram e tinham Alzheimer, a presença de ferro e cobre em suas formas metálicas, e não como íons, como se apresentam em vários alimentos e em proteínas do nosso organismo.

“[Nossos resultados] ajudarão os pesquisadores a entender a complexa bioquímica do cérebro, incluindo como esses metais podem estar envolvidos em processos patológicos. O estudo também deve responder a perguntas sobre como os metais interagem com as proteínas amiloides das quais as placas são formadas. Essa linha de pesquisa pode levar a novos tratamentos que tenham os metais como alvo e também os que visam as proteínas amiloides, atualmente em consideração”, contou à Folha Neil Telling, da Universidade de Keele, no Reino Unido, e autor sênior do estudo.

“Elementos metálicos como cobre e ferro carregados positivamente [íons] participam de reações químicas que ocorrem no tecido cerebral saudável, relacionadas com o metabolismo celular e com a produção de neurotransmissores. O estudo é pioneiro na detecção destes elementos nas formas não oxidadas no cérebro humano, embora a determinação das consequências do acúmulo dessas formas não oxidadas em placas beta-amiloide no cérebro de pacientes com alzheimer necessite de outros estudos”, avalia o professor da UFABC Alexandre Kihara, que não participou do trabalho.

Além disso, a existência de pequenas partículas magnéticas no cérebro pode ajudar no diagnóstico e no monitoramento da progressão, especula o pesquisador, já que elas poderiam, a princípio, ser detectadas em exames de ressonância magnética.

“Cada descoberta científica como essa oferece outra peça do quebra-cabeça para explicar essas doenças complexas e nos leva um passo adiante no caminho para tratá-las com sucesso”, diz Telling.

E as possibilidades de tratamento são tantas quanto as dimensões da doença. Existe também o acúmulo da proteína tau no interior de neurônios, alterações na comunicação entre essas células (nas sinapses), modificações vasculares e também inflamatórias, explica Paulo Caramelli, professor titular da UFMG e estudioso de demências. “É muito difícil saber qual é o melhor alvo”, resume.

“Há uma certa confusão entre esses sinais de alteração celular no tecido cerebral e as causas do Alzheimer. Estas alterações são resultado de um processo que possui impacto na saúde do paciente, mas não são as causas primárias, que como comentamos, parece ser uma interação entre a predisposição genética e fatores de risco”, diz Kihara, que estuda desenvolvimento, adaptação e degeneração do sistema nervoso.

Os fatores de risco são muitos. Sabe-se, por exemplo, que pode haver predisposição genética, caso do chamado Alzheimer familiar, que corresponde a cerca de 5% do total. A maior parte dos casos está ligada a alterações nos genes que, por exemplo, codificam a proteína precursora beta-amiloide ou as presenilinas 1 e 2 –essas últimas ajudam a processar a proteína precursora beta-amiloide, explica Kihara.

Esses pacientes podem ter os primeiros sintomas ainda relativamente jovens, já na quarta década de vida. A grande maioria dos casos, porém, não é hereditária, e são chamados de “esporádicos”.

Estão associados ao aumento do risco de ter Alzheimer esporádico a idade (especialmente a partir da faixa dos 60-65 anos) e condições bastante diversas, como tabagismo, sedentarismo, diabetes, dieta rica em açúcares e gordura, baixa escolaridade e traumatismos cranianos.

“Existe um potencial de redução de até 40% dos casos com base nos fatores de risco”, diz Caramelli.
Ao todo, existem cerca de 30 milhões de pessoas com Alzheimer em todo o mundo, e o diagnóstico é essencialmente clínico, ou seja, depende do surgimento de sintomas e de como o médico consegue interpretar os sinais e sua progressão.

“Existem muitos fatores confundidores, como por exemplo quando a pessoa se aposenta, desenvolve uma depressão, o que gera alteração cognitiva e queda de criatividade. O médico pode até patinar nesse começo. Será que o paciente está deprimido ou é o começo de uma alteração cognitiva de mais impacto?”, conta Maria Elisabeth Ferraz, médica da disciplina de neurologia da Escola Paulista de Medicina.

Ainda assim, mesmo com o diagnóstico, os medicamentos que existem hoje tratam apenas sintomas, e há apenas cinco deles, relata Ferraz, sendo que quatro têm mecanismo semelhante, tentando corrigir a comunicação entre neurônios mediada pelo neurotransmissor acetilcolina, muito importante para funções relativas à memória — um dos domínios em que o Alzheimer tende a se manifestar mais precocemente.

Ou seja, não havia, até agora, medicamento aprovado capaz de realmente desacelerar ou impedir a progressão da doença.

Quanto ao aducanumabe, há entre os médicos uma espécie de esperança desconfiada —todos torcem para que os resultados se confirmem nos novos estudos e na prática clínica, mas, ainda assim, provavelmente o efeito será limitado. De toda forma, o tempo ganho para o paciente e sua família é precioso.

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