Como desinformação sobre a Covid provocou escassez de um medicamento de uso veterinário

Falta de ivermectina no mercado está levando fazendeiros e veterinários a buscar alternativas

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Erin Woo
The New York Times

O Emerson Animal Hospital só tinha mais 10 ml de ivermectina.

Havia meses o hospital veterinário em West Point, Mississippi, via seus estoques da droga diminuírem. A médica veterinária Karen Emerson, proprietária do hospital, começou o ano com um vidro de 500 ml de ivermectina, que ela utiliza para eliminar parasitas de cães, galinhas e outros pacientes. Mas quando o vidro estava quase vazio e os funcionários do hospital tentaram adquirir mais ivermectina, só conseguirem um frasco de 50 ml. Em todos os outros lugares o que ouviram foi que o medicamento estava em falta.

quatro caixas de ivermectina estão dispostas sobre uma mesa
Caixas de ivermectina; remédio não tem eficácia compravada contra Covid-19 - Reprodução

A Dra. Emerson começou a racionar o fármaco, reservando-o para serpentes e outros animais exóticos para os quais não dispunha de outro vermífugo. Já no caso dos donos de cachorros, ela os orientava a usar um medicamento substituto, mais facilmente disponível, mas cujo custo pode ser sete vezes mais alto.

A escassez de ivermectina a pegou de surpresa, porque o medicamento nunca antes estivera em falta. Mas ela entendeu o porquê quando muitas pessoas começaram a procurar sua clínica para perguntar sobre o uso do produto para tratar a Covid-19.

“Acho que é por isso que a ivermectina está em falta — é porque tantas pessoas a estão usando”, ela disse.

A desinformação de que a ivermectina seria eficaz no tratamento ou prevenção do coronavírus percorre as redes sociais, podcasts e programas de rádio há mais de um ano. Apesar de a FDA (Food and Drug Administration, órgão federal dos EUA responsável pela segurança de alimentos e medicamentos) ter dito que a ivermectina não é aprovada para o tratamento da Covid e aconselhado a população a não tomá-la, personalidades na mídia que questionam o valor das vacinas contra o coronavírus, como o apresentador de podcast Joe Rogan, promovem a ivermectina para essa finalidade.

As inverdades levam algumas pessoas a tomar overdoses de determinadas formulações da droga, e isso por sua vez contribui para a sobrecarga de trabalho de médicos e hospitais. Os últimos na lista dos prejudicados pela desinformação são pessoas como a Dra. Emerson, que usam a ivermectina regularmente para as finalidade veterinárias para a qual foi aprovada.

Certas formulações de ivermectina podem ser usadas no tratamento de piolhos e outros problemas de humanos, mas outras, que vêm em forma líquida ou pastosa, são usadas comumente por criadores de cavalos, gado e outros animais de criação para combater vermes e parasitas. Pecuaristas, fazendeiros e fornecedores disseram que cada vez mais pessoas vêm tentando comprar esses produtos de uso veterinário para combater ou prevenir o coronavírus.

A demanda atinge os criadores de cavalos, gado e outros animais. A Jeffers, rede americana de fornecimento de produtos para animais, elevou recentemente o preço do tubo de ivermectina em pasta de US$ 2,99 para US$ 6,99. Sobrecarregada de pedidos, uma loja de produtos para animais em Las Vegas começou a vender o medicamento apenas a pessoas que comprovem possuir um cavalo. Uma fazendeira na Califórnia ouviu que os pedidos de ivermectina eram tantos que ela era a 600ª na lista para receber parte do próximo lote.

A falta de ivermectina no mercado está levando alguns fazendeiros e veterinários a buscar alternativas genéricas ou mais caras para seus animais. Outros recorrem a lotes vencidos ou passaram a armazenar o produto quando possível. Muitos estão preocupados.

“Estou alarmado”, comentou Marc Filion, dono da fazenda Keegan-Filion, em Walterboro, Carolina do Sul, que usa o fármaco para tratar seus 400 porcos e 25 bovinos. Ele disse que se não puder dar o remédio a seus porcos quando atingem cinco semanas de idade, eles podem apresentar diarreia e alguns talvez precisem ser abatidos.

Esses problemas ressaltam os efeitos da desinformação no mundo real e a dimensão que as consequências podem assumir, disse Kolina Koltai, pesquisadora da Universidade de Washington que estuda teorias conspiratórias online.

“O problema não afeta apenas as comunidades que acreditam na desinformação”, ela explicou. “Afeta até pessoas que não têm posição tomada em relação a vacinas. Está afetando cavalos.”

No mês passado as receitas médicas de formulações de ivermectina para humanos passaram da média de 3.600 por semana antes da pandemia para mais de 88 mil por semana, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC). Não havia dados disponíveis sobre pessoas que compram ivermectina destinada a animais.

Em comunicado à imprensa, a FDA disse que não recebeu denúncias de escassez de ivermectina, mas “reconhece que o acesso à ivermectina para animais é importante para fazendeiros, criadores e donos de cavalos, para manter a saúde de seus animais e rebanhos”.

No mês passado a agência postou no Twitter que as pessoas não devem usar o medicamento para combater a Covid, escrevendo: “Falando sério, pessoal, parem com isso”.

A desinformação sobre ivermectina como potencial cura para a Covid surgiu semanas depois da pandemia começar. Em abril de 2020, cientistas da Universidade Monash, em Melbourne, Austrália, publicaram conclusões preliminares indicando que o remédio, quando usado em ambiente de laboratório, era capaz de matar o coronavírus em 48 horas. A universidade avisou que os resultados eram preliminares e que a pesquisa ainda estava em curso.

“NÃO se automedique com ivermectina e NÃO use ivermectina produzida para animais”, ela disse em seu site na internet.

Uma semana mais tarde, a FDA divulgou um aviso contra o uso de ivermectina animal contra a Covid. Não adiantou. A descoberta se espalhou rapidamente online, alimentada por outros estudos que indicavam efeitos benéficos da ivermectina sobre pacientes com coronavírus. Pelo menos um desses estudos foi retratado.

Desde então, informações falsas vêm se multiplicando em sites de mídia social como Reddit e Facebook. Em um grupo do Facebook, o Ivermectin Covid-19 Testimonials, 4.200 membros trocam conselhos sobre efeitos colaterais possíveis e como calcular dosagens da pasta feita para ser usada em cavalos. As discussões frequentemente são ecoadas em podcasts e outros veículos.

“Ivermectina em pasta — é para tomar via oral ou esfregar na pele?”, indagou um post recente no grupo do Facebook.

“Passe num cream cracker com um pouco de manteiga de amendoim”, respondeu uma pessoa.
O Facebook disse que removeu conteúdos sobre possíveis transações com ivermectina, além de quaisquer alegações de que o medicamento seja uma cura garantida. O Reditt disse que encoraja discussões abertas, desde que não violem suas diretrizes.

Com o aumento da popularidade do medicamento, alguns veterinários se prepararam para a falta dele. No ano passado a veterinária Juliana Sorem, da WildCare, em San Rafael, Califórnia, onde são tratados animais silvestres feridos, comprou um estoque da droga previsto para durar dois anos. O diretor do estabelecimento a mandou agir prontamente assim que eles souberam que pessoas estavam usando a ivermectina contra a Covid.

“Quisemos ser proativos”, explicou Sorem. A WildCare agora tem seis frascos preciosos de ivermectina estocados.

Outras clínicas não agiram tão rapidamente e acabaram se arrependendo. Judi Martin, gerente do centro equestre Skyline Ranch, em Oakland, Califórnia, contou que no início deste ano seu irmão a aconselhou a fazer um estoque de ivermectina, depois de ele próprio ter tomado o medicamento para prevenir a Covid. Martin disse que não o levou a sério.

Nove meses mais tarde, a fornecedora com quem Martin trabalha não tinha mais ivermectina para vender. Segundo ela, a fornecedora descreveu o medicamento como “ouro líquido” e lhe disse que ela é a 600ª na lista para o próximo lote.

Alguns distribuidores estão se adaptando para lidar com a demanda enorme. No mês passado uma notícia se espalhou rapidamente: que a loja de produtos para animais V&V Tack & Feed, em Las Vegas, exibiu um cartaz dizendo que os fregueses que querem comprar ivermectina agora precisam mostrar uma foto em que estão com seu cavalo.

“Estou reservando a ivermectina para meus fregueses que têm cavalos, porque eles precisam”, disse Shelly Smith, da loja.

Ruth Jeffers, dona da rede de produtos para animais Jeffers, disse que a pasta de ivermectina disponível no site de sua empresa acabou este ano. Quando ela repôs os estoques com versões mais caras, estas também foram todas vendidas.

Por isso, nesta primavera, ela limitou clientes novos a cinco tubos cada. Movida em parte pela demanda, ela elevou o preço da ivermectina de marca Jeffers, a opção mais barata que a rede vende, de US$ 2,99 o tubo para US$ 4,99 e depois para US$ 6,99.

A falta de ivermectina a preço acessível recentemente gerou uma discussão no Horsey Haven Retirement Home, Newcastle, Califórnia, um estábulo para cavalos aposentados. Laura Beeman, proprietária do estabelecimento, disse que durante anos usou ivermectina para combater os vermes dos 28 cavalos do estabelecimento. Os tratamentos são ministrados quatro vezes por ano e não são cobrados dos donos dos animais.

Mas com o preço do medicamento subindo, Beeman não sabe se vai continuar a oferecer o serviço gratuitamente. Ela disse que pode começar a cobrar dos proprietários os tubos de pasta de ivermectina, que antes saíam por US$ 1,99 mas agora custam US$ 7,99.

“Estou sem um tubo sequer”, ela disse.

A Dra. Emerson disse que seu hospital veterinário geralmente usa dois vidros de 500 ml de ivermectina por ano. Desde que o estabelecimento abriu as portas, sete anos atrás, ela nunca teve dificuldades em obter o remédio.

O primeiro indício de que alguma coisa havia mudado chegou dois meses atrás, quando proprietários de pets começaram a perguntar sobre o uso do remédio para tratar o coronavírus em humanos. No mês passado a empregada da veterinária contou que sua irmã andava tomando ivermectina em seu café.
Emerson vinha tentando repor seus estoques da droga, mas só encontrou o frasco de 50 ml. Agora ela entende o porquê.

Desde então, contou, ela vem fazendo o possível para combater o uso de ivermectina em sua comunidade. Em entrevista que deu a uma estação de TV local em agosto, ela avisou os ouvintes sobre os perigos da ingestão de ivermectina e o impacto que a falta do produto pode ter sobre animais. Quando pessoas a procuram para perguntar sobre o medicamento, ela explica os perigos de sua utilização para finalidades não previstas na bula.

Dispondo de apenas 10 ml de ivermectina, a veterinária disse que seu estoque deve acabar no mês que vem.

“Se chegar mais um bando de galinhas com ácaros nas pernas, não vou ter como tratá-las”, ela comentou. “E então não sei o que vamos fazer.”

Tradução de Clara Allain.

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