Morte de adolescente não tem relação com vacina da Pfizer, ao contrário do que sugere tuíte

Conteúdo viral engana ao tentar desacreditar eficácia dos imunizantes contra a Covid

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São Paulo

É enganoso um tuíte que sugere que a causa da morte de uma adolescente de 16 anos, de São Bernardo do Campo, em São Paulo, foi a vacina contra a Covid-19 da farmacêutica Pfizer. Comentários no post, em sua maioria criticando os imunizantes, mostram que os usuários também interpretaram que a vacina foi a responsável pelo falecimento.

Como verificado pelo Projeto Comprova, no dia da publicação, uma nota da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) já dizia que os dados sobre a morte da garota ainda eram preliminares e necessitavam “de aprofundamento para confirmar ou descartar a relação causal com a vacina”. Dessa forma, o caso ainda estava sendo investigado.

No dia seguinte, o governo de São Paulo descartou a possibilidade e concluiu que não havia como atribuir relação causal entre a PTT (púrpura trombótica trombocitopênica) —doença preexistente detectada na garota— e a vacina. Além disso, um grupo de especialistas do governo concluiu que a paciente não apresentou qualquer doença cardiológica, como dito no tuíte.

Mão esquerda segura frasco de doses de vacina; há uma agulha sendo enfiada no frasco
Agente manipula dose de vacina da Pfizer, em UBS em São Paulo - Rivaldo Gomes - 13.set.2021/Folhapress

Segundo infectologista consultado pela reportagem, a PPT é uma condição que ocorre na infância e na adolescência em que o organismo apresenta uma queda de plaquetas.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos ou conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Procurada, a autora do post apenas disse, por mensagem, que “a família (da jovem) está tomando as providências necessárias para os fatos serem devidamente esclarecidos”.

Como verificamos?

A reportagem buscou informações nos sites oficiais dos órgãos do governo e em matérias publicadas em veículos jornalísticos.

Além disso, pediu posicionamentos da Anvisa, Ministério da Saúde, Pfizer, hospital Vida’s Alta Complexidade —onde a jovem faleceu— e conversou com especialistas: o infectologista pediátrico do Grupo Prontobaby (rede de hospitais pediátricos com 4 unidades no Rio de Janeiro) e professor da Universidade Federal Fluminense André Ricardo Araújo da Silva e com o virologista, coordenador do curso de biomedicina do IBMR (Instituto Brasileiro de Medicina e Reabilitação) e membro da Rede do Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde Raphael Rangel.

A reportagem chegou até a família da adolescente depois de entrar em contato com um repórter que entrevistou a mãe dela para um jornal do ABC Paulista.

Cristiane Borges, a mãe, nos enviou um áudio em que afirmou não ter condições de dar detalhes e passou o telefone de uma amiga, identificada como Juliana, que estaria acompanhando o caso.

Em seguida, pelo WhatsApp, Juliana disse que a adolescente não tinha doenças preexistentes, mas se recusou a encaminhar o atestado de óbito por, segundo ela, ser uma decisão dos advogados.

Verificação

Não foi a vacina

A autora do post verificado sugere que a causa da morte da adolescente foi a vacina. Na publicação, é possível notar inúmeros comentários negativos sobre os imunizantes, como: “Meu filho tem 6 anos, vai pra igreja, supermercado e escola. Nunca perdeu um dia de aula e… Não será vacinado. Não matarei meu filho com uma picada”; “Estamos em um pais (sic) que somos obrigados a ser cobaia destes crapula (sic) da medicina…que Deus possa confortar a família”; “Que tristeza. A minha filha não vai tomar de jeito nenhum”.

No dia em que o post foi publicado, 16 de setembro, havia apenas a suspeita de que a morte poderia estar relacionada com a vacina da Pfizer, sem nenhuma comprovação. A Anvisa disse em nota, na mesma data, que “os dados recebidos ainda são preliminares e necessitam de aprofundamento para confirmar ou descartar a relação causal com a vacina”. Dessa forma, o conteúdo aqui verificado já era enganoso por levar à interpretação de que a morte teria sido pela vacina quando, na verdade, nada estava confirmado.

Um dia depois, 17 de setembro, um comunicado divulgado pelo governo de São Paulo trazia a conclusão de que a morte da adolescente não foi causada pela vacina. O diagnóstico apontou que a causa do óbito, sete dias após a jovem ser imunizada, foi uma doença autoimune, grave e rara, conhecida como púrpura trombótica trombocitopênica. Segundo o infectologista pediátrico André Ricardo Araújo da Silva, a PTT é uma condição que ocorre normalmente na infância, podendo se manifestar na adolescência, em que o organismo apresenta uma queda de plaquetas, um dos componentes do sangue envolvido na coagulação. De acordo com o especialista, a doença é a forma mais comum de queda de plaquetas e, na grande maioria dos casos, é um fenômeno benigno, permitindo que a pessoa se recupere bem. Mas existem alguns casos que, mesmo com tratamento, não evoluem de forma satisfatória.

“Existe um pico, que vai mais ou menos de 2 a 5 anos (de idade), que é a incidência maior, mas pode ocorrer também em adolescentes. A causa da PTT ainda é desconhecida, parece ser um fenômeno imune que ocorre no organismo, mas há algumas relações de como a pessoa adquire. Algumas infecções, como HIV, mononucleose ou outras doenças autoimunes, como lúpus, podem desencadear esses sintomas”, afirmou.

Dentre os 70 profissionais que participaram do diagnóstico da adolescente, estavam especialistas em Hematologia, Cardiologia, Infectologia, médicos dos Cries (Centros de Referência para Imunobiológicos Especiais) do Estado e representantes dos municípios de São Bernardo do Campo, Santo André e São Paulo. O Cievs (Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde) estadual também contribuiu para a análise.

Segundo o texto do comunicado, “não é possível atribuir diretamente a doença e óbito à vacinação” e “tal caso não pode ser usado como justificativa para alterar a estratégia de vacinação de adolescentes sem comorbidades”. A doença é rara e grave e não tem “uma causa conhecida capaz de desencadeá-la”, sendo assim “não há como atribuir relação causal” entre ela e as vacinas de RNA mensageiro, como é o caso da Pfizer.

No mesmo dia, a Anvisa informou que se reuniu com a Pfizer, mas no encontro não foram apresentadas novas informações sobre o caso. De acordo com a agência, “até o momento, os achados apontam para a manutenção da relação benefício versus risco para todas as vacinas autorizadas no Brasil, ou seja, os benefícios da vacinação excedem significativamente os seus potenciais riscos”.

Na segunda-feira (20), a agência confirmou a inexistência de relação causal. Segundo nota, representantes da área de Farmacovigilância da Anvisa se reuniram com membros da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e técnicos do Centro de Vigilância Sanitária e Centro de Vigilância Epidemiológica e concluíram que os dados apresentados pelo governo paulista são “consistentes e bem documentados”.

Procurada pelo Comprova, a Anvisa afirmou que até 15 de setembro houve 32 notificações de eventos adversos de diferentes tipos após a vacinação de adolescentes com a Pfizer, mas nenhum óbito foi relacionado ao produto.

Em nota enviada à reportagem, a farmacêutica informa estar ciente de relatos raros de miocardite e pericardite, além de outros possíveis eventos adversos, após a aplicação de vacina e leva o acompanhamento e monitoramento desses casos “muito a sério”. Sobre o caso específico do óbito da adolescente em São Bernardo do Campo, diz estar acompanhando e reafirmou que não foi estabelecida uma relação causal entre o ocorrido e o imunizante.

Suspensão

O caso da adolescente foi usado como uma das justificativas do Ministério da Saúde para recomendar a suspensão da imunização em adolescentes sem comorbidades em 16 de setembro. A própria Anvisa, entretanto, manteve a recomendação de vacinação neste grupo, com base em evidências científicas avaliadas e aprovadas pelo órgão.

O ministro Marcelo Queiroga atribuiu o recuo a dúvidas sobre a segurança e eficácia dos imunizantes em adolescentes. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seus apoiadores pressionaram Queiroga a rever as regras.

Na noite do dia 16, Queiroga enviou um áudio ao programa “Os Pingos nos Is”, da rádio Jovem Pan, no qual afirmou que adolescentes “sem comorbidade, no momento, não serão considerados para a vacinação para a Covid”. A gravação era uma resposta às críticas do programa sobre a vacinação dos jovens. Um dos motores da campanha para não vacinar ainda os adolescentes é Ana Paula Henkel, ex-atleta de vôlei e comentarista da rádio.

A medida foi alvo de críticas. Segundo a Folha, o presidente do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e secretário de Saúde do Maranhão, Carlos Lula, disse que a decisão de restringir a vacinação dos adolescentes é o maior golpe que o PNI (Programa Nacional de Imunizações) recebe em quase 48 anos de atividades.

“Sempre achei que a gente poderia perder esse patrimônio diante de tudo isso que aconteceu no combate à pandemia, mas não [por gesto] vindo de um ministro da Saúde”, afirmou o secretário.

A Anvisa e especialistas recomendam a vacinação de todos entre 12 e 17 anos. A OMS (Organização Mundial da Saúde) diz que a vacinação de adolescentes não é prioridade, mas tendo vacinas, reforça que todos devem se vacinar.

A SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) também divulgou nota de posicionamento em que reafirma a recomendação de vacinar esse público.

Em 20 de setembro, o Ministério da Saúde concluiu, após sete dias de investigação, que a morte ocorreu por púrpura trombocitopênica trombótica, que diz respeito a um distúrbio autoimune.

As informações foram divulgadas pela colunista Mônica Bergamo, da Folha, a partir de uma entrevista com o ministro Marcelo Queiroga.

O ministro ainda afirmou que “mesmo que o caso estivesse vinculado ao imunizante, isso não invalidaria a vacinação [desta faixa etária]. Os benefícios são infinitamente maiores do que os riscos”.

Reportagem do Estadão mostra que, desde o início da pandemia, 7.063 adolescentes foram internados com Covid-19 no Brasil. Destes, 60% eram saudáveis, sem nenhum fator de risco para a doença, e 657 morreram. Especialistas ressaltam que os sobreviventes ainda precisam se recuperar das sequelas.

A conclusão do caso, no entanto, não deve fazer o ministério voltar a indicar a vacinação de adolescentes de forma imediata. O ministro afirma que talvez seja necessário segurar o freio por uma questão de “priorização e logística”.

A adolescente

Isabelli Borges era de São Bernardo do Campo (SP). Ela, que tinha 16 anos, tomou a vacina no dia 25 de agosto de 2021. O Comprova chegou até a família da adolescente por meio de um repórter que entrevistou a mãe dela para um jornal do ABC Paulista.

Cristiane Borges, a mãe de Isabelli, nos enviou um áudio em que afirmou não ter condições de dar detalhes. A foto do perfil do WhatsApp dela é uma imagem da filha ainda criança. Ela passou o contato de uma amiga, identificada como Juliana, que estaria acompanhando o caso.

Segundo Juliana, após receber a primeira dose do imunizante, Isabelli apresentou algumas reações. Os detalhes sobre o caso foram reportados ao site Vigimed, da Anvisa, e no site da Pfizer, segundo ela.

A jovem foi ao hospital Coração de Jesus, no ABC paulista, e depois transferida para o hospital Vida’s Alta Complexidade, na cidade de São Paulo. Após alguns exames, foi informado que a vacina teria “roubado” hemácias e hemoglobinas dela.

Raphael Rangel, do IBMR, afirma que é infundado o argumento de que a vacina “roubou” hemácias e hemoglobinas. Segundo o especialista, isso é impossível de acontecer no mecanismo do imunizante de RNA mensageiro, como a da Pfizer. “Lembrando que a vacina tem por finalidade estimular a produção de anticorpos, então, não tem nenhum tipo de ligação com a questão hematológica do paciente”, afirmou.

Por três vezes, o Comprova solicitou mais informações sobre Juliana, como sobrenome, ocupação e a relação que mantém com a família da adolescente (duas direcionadas a ela e uma terceira a Cristiane), mas não obteve resposta.

Atestado de óbito

Em 2 de setembro de 2021, Cristiane foi chamada ao hospital, onde foi informada sobre a morte da filha.

“Os médicos relataram para a mãe que a jovem sofreu dois infartos, tendo sido descrito na certidão de óbito: ‘Choque cardiogênico, infarto agudo do miocárdio e anemia severa’. É importante ressaltar que ela era uma jovem saudável, não tinha comorbidades, não estava com Covid e não tinha anemia”, disse Juliana.

No entanto, a nota do governo de São Paulo ressalta que o grupo de especialistas concluiu que a paciente não apresentou qualquer doença cardiológica e que o quadro clínico e os exames complementares sugerem púrpura trombótica trombocitopênica.

O Comprova pediu para ter acesso ao atestado de óbito da adolescente e foi informado pela amiga da família que, no momento, não era possível “compartilhar nenhum documento” e que o caso está nas mãos dos advogados. A equipe pediu o contato desses advogados, mas não obteve resposta.

“A família tomará as providências necessárias para esclarecer a verdade”, afirmou Juliana, ao ser questionada sobre o posicionamento da família diante da conclusão feita pelo Ministério da Saúde que afastou a possibilidade de a morte ter relação com a vacina da Pfizer.

Procurado, o hospital Vida´s Alta Complexidade enviou uma nota, na qual confirma que a jovem esteve internada no local e faleceu, pois “não resistiu aos procedimentos adotados”. Apesar de ter sido solicitado, pelos verificadores, o atestado de óbito, eles não quiseram passar e não deram mais informações sobre a causa da morte, pois “toda e qualquer informação referente ao caso deverá (se assim, concordarem) ser respondida pelos responsáveis da menor”, e que, “obviamente, não fomos autorizados a divulgar mais informações, tampouco o laudo mencionado no atestado de óbito”.

Autora do post

Apoiadora de Bolsonaro, Valeria Rozen Scher é psicóloga e ficou conhecida nas redes sociais após publicar vídeos em que se recusava a usar máscara ao andar na praia de Búzios, no Rio de Janeiro.

“Continuando a saga das arbitrariedades da pandemia. Pode me prender, mas não vou colocar a p* da máscara!”, escreveu no Twitter em 8 de agosto de 2020. O perfil dela na plataforma conta com mais de 29 mil seguidores.

Em dezembro de 2020, Valeria desejou que 2021 fosse um ano “sem distanciamento e isolamento”. A psicóloga bolsonarista disse ainda que tem orgulho de estar entre as pessoas que não aceitam as medidas restritivas.

O uso de máscaras foi recomendado pela OMS para fornecer uma barreira contra as gotículas potencialmente infecciosas da Covid-19. A organização deixou claro, no entanto, que apenas as máscaras não seriam suficientes para combater a pandemia, sendo necessário aliar o distanciamento social e a higiene das mãos. Mais tarde, quando as vacinas estavam disponíveis, o órgão passou a recomendá-las também.

O Ministério da Saúde do Brasil determina o uso obrigatório de máscaras para ambientes internos e externos, ficando a cargo dos estados e municípios determinar quais serão as punições aplicadas a quem descumprir a orientação.

Em postagens nas redes sociais, Valeria aparece ao lado de personalidades que apoiam o governo Bolsonaro em fotos e vídeos. Em um dos muitos registros ao lado da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), ambas aparecem para apoiar a candidatura de Alberto Szafran para vereador do Rio de Janeiro nas eleições de 2020.

A médica Nise Yamaguchi, que defende o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes para combater a Covid-19, também aparece ao lado de Valeria. A foto foi compartilhada em 2 de junho deste ano. Na legenda, ela detalha que a imagem é do dia em que conheceu Yamaguchi e que, no mesmo momento, estavam “entre amigos. Pessoas do bem, pensando em um país melhor”.

Procurada, ela apenas disse, por mensagem, que “a família está tomando as providências necessárias para os fatos serem devidamente esclarecidos”.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre pandemia, políticas públicas do governo federal e eleições. O tuíte verificado aqui teve mais de 8 mil interações.

Conteúdos que tentam desacreditar as vacinas ou minimizar os riscos da pandemia são perigosos porque podem levar a população a colocar a saúde em risco.

O Comprova já publicou diversos conteúdos sobre imunização, como o do médico que engana ao afirmar que as vacinas não funcionam contra a variante delta, o de post que desinforma afirmando que o CDC e Anthony Fauci não acreditam nos imunizantes e o de médica que engana ao afirmar que vacinas são experimentais.

Enganoso é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações disponíveis no dia 22 de setembro de 2021.

A investigação desse conteúdo foi feita por UOL, piauí e Poder360 e publicada na terça-feira (22) pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 33 veículos na checagem de conteúdos sobre ​coronavírus, políticas públicas e eleições. Foi verificada por Folha, O Povo, Jornal do Commercio, Diário do Nordeste, Correio e GZH.

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