'Não estou te perguntando, estou te comunicando', ouviu filha de segurado da Prevent ao questionar médico sobre tratamento

Diretora de cinema relata como pai foi passado para cuidados paliativos de Covid sem seu consentimento

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Bel Bechara

Roteirista e diretora de cinema​

São Paulo

Em maio de 2020, quando a pandemia de coronavírus passou a se deteriorar rapidamente no Brasil, a roteirista e diretora de cinema Bel Bechara buscou tratamento para seu pai, Murillo Bechara, 91, na rede Prevent Senior.

Em depoimento à Folha, ela relata as semanas de internação do aposentado e o périplo da família à luz do que tem sido exposto na CPI da Covid.

Desde o começo, quando chegaram as primeiras notícias sobre a Covid no Brasil, comentei com meu marido: meu pai não pode pegar isso de jeito nenhum. Eu era responsável pelos cuidados dele, que com 91 anos sofria de Alzheimer e insuficiência cardíaca.

Em acordo com a geriatra particular, diminuí a circulação de pessoas em torno de meu pai, suspendendo a fono e a fisio, além de garantir um esquema para que os cuidadores não precisassem de transporte público. Nada foi suficiente, ele contraiu Covid.

Fachada de uma unidade da Prevent Senior
Fachada de uma unidade da Prevent Senior em São Paulo - Amanda Perobelli - 28.set.21 / Reuters

Devido aos custos muito altos de um tratamento em hospital particular, recorri ao Prevent Senior, plano de saúde que foi feito às pressas para ele quando tive que trazê-lo para São Paulo.

Primeiro ele foi parar no pronto-socorro de uma unidade do Sancta Maggiore, onde constataram 50% dos pulmões tomados por pneumonia. Em contato com minha irmã que mora fora, avisei: vão querer dar cloroquina. Era o começo da pandemia, mas já sabíamos que seria muito arriscado para pacientes cardíacos.

Decidimos não autorizar. O médico do pronto-socorro, irritado com a minha recusa em conceder autorização, disse que, se eu quisesse mesmo que eles fizessem de tudo pelo meu pai, deveria repensar aquilo. Virou as costas e saiu.

Na época, justifiquei a atitude dele pelo nervosismo da situação: era um cenário de guerra, um enfrentamento de uma doença sem tratamento conhecido.

Meu pai foi transferido para outra unidade, onde ficou internado em um apartamento. Os médicos começaram a conversar sobre a possibilidade de não intubá-lo caso agravasse, opinando que não valeria a pena.

Deixei bem clara a posição da família e levei um documento por escrito acenando para a nossa escolha: queríamos que investissem nele, em vez de mandá-lo para o paliativo. O médico me garantiu que não precisava do documento e que nossa opção já estava registrada no prontuário.

No outro dia, fui comunicada que a equipe médica queria conversar comigo. Ao chegar ao hospital, um médico paliativista, seguido por um séquito de jovens (talvez alunos) me comunicou que meu pai tinha sido sedado com morfina depois de uma piora e que não seria intubado.

Ao tentar questionar, ele respondeu: "Não estou perguntando, estou comunicando". Disse ainda que a missão dele era proteger os pacientes de familiares como eu, dispostos a submetê-los a intervenções dolorosas que não levam a nada.

Nesta altura, eu já conhecia o conceito de distanásia, da qual estava sendo acusada. Mas a Covid era uma doença nova e, conversando com vários médicos, fiquei sabendo de casos como o de uma idosa de 94 anos com mais comorbidades que meu pai que chegou a ser intubada e sobreviveu. A geriatra particular que cuidava do meu pai opinou: neste caso, a escolha deveria ser da família.

Fiz uma videochamada para a minha mãe e minha irmã se despedirem do meu pai, mas não desisti de lutar. Preparamos material para uma liminar, que não precisou ser utilizado. Depois da repercussão de uma reportagem publicada nesta Folha, meu pai foi devidamente intubado e transferido para a UTI.

Acompanhei tudo de perto e vi que realmente tentaram salvá-lo, mantendo sempre comunicação aberta comigo nas duas semanas em que ele permaneceu ali. Não tenho como saber, no entanto, se o dia que ele passou na base de morfina e sem os cuidados adequados tirou-lhe as últimas chances.

Quando ele faleceu, tive que ir ao necrotério "reconhecer o corpo". Naquele cenário de muitas mortes e caixões fechados, me pareceu uma medida de segurança para evitar erros.

Como estava proibida a manipulação de corpos, não havia possibilidade de limpeza ou tratamento funerário. Eu o encontrei ensanguentado dentro de um saco azul. Ninguém deveria ver uma pessoa amada nessas condições.

Saindo dali, entrei no elevador, onde dois funcionários comentavam sobre o médico paliativista que "aprontou de novo", com novas reclamações de outra família. Eles riam.

O horror já estava posto, mas ficar sabendo agora, pela CPI, que era tudo proposital, que colocavam idosos no paliativo para reduzir custos e distribuiam remédios ineficazes por motivos ideológicos eleva tudo ao patamar de crime contra a humanidade. Que sejam responsabilizados e possamos reconstruir nosso país.

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