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Coronavírus

Datafolha mostra dimensão do 'elefante' da Covid no Brasil

Por falta de dados no país, entender a pandemia é como descrever o lendário paquiderme que não enxergamos

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Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

Entender a pandemia de Covid-19 no Brasil e o que enfrentaremos com o espalhamento explosivo da variante ômicron é como descrever o lendário elefante que não enxergamos.

Quantos brasileiros tiveram Covid? Quantos ainda não se vacinaram? Quantos pretendem vacinar os filhos? Mesmo essas perguntas diretas têm mais de uma resposta.

Exame de Covid-19 é realizado no Aeroporto de Guarulhos
Exame de Covid-19 é realizado no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, em meio a explosão de casos da doença - Roosevelt Cassio - 12.jan.2022/Reuters

Na parábola, um elefante é apalpado por vários cegos que tentam descrever o animal que não conheciam. Quem inspeciona a tromba acha que é uma cobra, quem toca nas pernas acha que ele parece um tronco de árvore, quem toca seu ventre imagina uma parede e assim vai.

Todos oferecem uma perspectiva válida, mas incompleta. Mortes em excesso, números oficiais e relatos descrevem o elefante da pandemia, mas cada um descreve só uma parte.

Agora o Datafolha traz outra parte do paquiderme. Talvez seu rabo, que parece uma corda que começamos a puxar e vemos que tem muito mais preso na outra ponta. Como uma população cansada, que já se expõe bastante e está vulnerável à ômicron.

Segundo o Datafolha, cerca de 42 milhões de brasileiros receberam resultado positivo para a Covid. O painel oficial do Ministério da Saúde, atualizado pela última vez em 9 de dezembro de 2021, reporta quase 20 milhões de casos positivos a menos do que a pesquisa estima —já conforme o consórcio de imprensa, foram 22,8 milhões de casos até esta quinta-feira (13).

Outro número oficial, escrito em fonte mais discreta, descreve os quase 617 mil óbitos e a letalidade de 2,8% do novo coronavírus no Brasil. Uma letalidade três vezes maior do que a estimada para a doença. O que indica que tivemos pelo menos três vezes mais casos do que os oficiais.

Considerando as subnotificações e que muitos óbitos aconteceram quando já tínhamos vacinas sendo aplicadas, o que reduziu muito a letalidade do vírus, devemos ter passado dos 100 milhões de brasileiros com Covid.

A diferença entre os pelo menos 100 milhões e os 42 milhões do Datafolha pode estar na nossa testagem limitada. Além de desperdiçarmos milhões de testes, ainda testamos só os casos mais graves em muitas regiões. Tanto que 70% dos entrevistados declararam não ter sido contaminados pela Covid, um número incompatível com nossa realidade.

Já os 20 milhões de testes positivos que não foram para nosso painel oficial demandam uma revisão importante do sistema de notificação. O atraso descabível dos números oficiais, desatualizados por mais de um mês, é um dos sinais das dificuldades que o sistema que o governo já tentou tirar do ar enfrenta.

Independente da descrição mais próxima do elefante real de casos, se não tivéssemos vacinas e se todos os curados estivessem protegidos, ainda poderíamos ter pelo menos meio país vulnerável.

Ou, olhando esse elefante por outro lado, ainda poderíamos ver o dobro de mortes se seguíssemos o sonho de quem promove o contágio como forma de proteção na imunidade de rebanho.

Felizmente, nos vacinamos muito. Segundo o Datafolha, só 10% dos brasileiros com 16 anos ou mais ainda não tomaram duas doses de vacina. E só 2% não se vacinaram nem pretendem se vacinar. Um forte sinal de que nosso movimento antivacina conta com muitos não praticantes que falam mal da vacina em público, mas já carimbaram sua carteirinha de vacinação.

A diferença para a estimativa de 100% da população adulta vacinada, registrada em algumas cidades, tem explicações. Os 100% totais são estimados com base no último Censo, de 2010. E muitas cidades ainda têm uma população flutuante de trabalhadores e visitantes que não aparecem nos números oficiais.

Por isso, alguns números oficiais podem passar dos 100% dos adultos vacinados. Os 90% do Datafolha podem indicar um número mais próximo da população vacinada real.

E também podem indicar os buracos de cobertura vacinal, locais como municípios do interior da região Norte nos quais, até onde tivemos números, menos de 40% da população foi vacinada.

Outro aspecto desse elefante indica que estamos entrando em outro período perigoso. Segundo a pesquisa, cerca de 4 milhões de brasileiros acreditam que tiveram Covid nos últimos 30 dias.

Mas outra resposta é ainda mais intrigante e indica que esse número deve ser muito maior —e que, novamente, estamos no escuro.

Mais de um quarto dos entrevistados, o equivalente a 50 milhões de brasileiros, afirmam ter tido gripe nos últimos 30 dias. E mais da metade conhece um amigo ou parente que ficou gripado.

Temos uma epidemia de gripe, sem dúvidas. Mas a variante ômicron é o vírus com o espalhamento mais rápido que a humanidade já viu. Ela é pelo menos três vezes mais transmissível do que a gripe. Onde a gripe pode ser transmitida, a ômicron certamente também pode.

Os sintomas mais comuns da ômicron em vacinados são bem parecidos com os da gripe, como nariz escorrendo, congestão nasal e garganta raspando. Provavelmente, muitos estão com Covid e confundem com a gripe, graças à proteção que as vacinas trouxeram.

Tanto que vivemos uma situação paradoxal. Desde o começo da pandemia, segundo o Datafolha, nunca os brasileiros saíram tanto e tão sem máscaras. Mais de 70% dos entrevistados já estão vivendo a vida normalmente (12%) ou tomando cuidado, mas saindo para trabalhar ou fazer outras atividades (60%).

Ao mesmo tempo, 45% dos entrevistados acham que a pandemia está fora de controle, uma proporção que se via desde o primeiro semestre de 2021. Ou seja, as pessoas sabem que o vírus está circulando, mas se sentem protegidas e seguras mesmo assim.

Tanto que muitos, quase 40%, se aglomeraram no Réveillon com mais de seis pessoas. Uma circulação que ainda vai cobrar um preço caro em internações.

Não estamos tranquilos. Apesar da proteção que vacinados ainda têm mesmo contra hospitalização pela ômicron, se ainda tivermos 10% dos adultos sem vacina, podemos esperar um grande estrago.

Muitas crianças ainda não estão vacinadas e esse foi um grupo especialmente atingido onde a ômicron já se espalhou.

No Reino Unido, mais de 60% dos leitos de UTI são ocupados pelos menos de 10% da população que não se vacinou. É uma parcela pequena que não se protegeu e que está sofrendo mais e ocupando mais o sistema de saúde.

Onde os nossos adultos não vacinados estiverem, seja esparsos pelo país seja concentrados em regiões atrasadas na vacinação, darão trabalho para o SUS. Esse elefante pode ser muito maior do que nossos sentidos nos informam.

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