Vacina contra Covid para crianças de 6 meses a 4 anos gera polêmica nos EUA

Na semana que vem, agência americana decidirá se aprova duas doses, mesmo antes de os testes para uma terceira terem acabado

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The New York Times

A revisão que a FDA (Food and Drug Administration), agência americana de fiscalização e regulamentação de alimentos e remédios, realizará em breve sobre a vacina da Pfizer-BioNTech para crianças pequenas não tem precedente na história recente.

Na semana que vem, os consultores científicos da agência decidirão se vão ou não endossar a aplicação de duas doses de vacina em crianças dos 6 meses aos 4 anos de idade antes que os testes clínicos tenham demonstrado que o processo completo de vacinação —três doses— é efetivo. Uma autorização como essa seria a primeira na história da agência, de acordo com muitos especialistas.

Imagem em close mostra as mãos de uma pessoa com luvas espetando uma seringa em uma ampola de vacina
Enfermeiro prepara dose da Pfizer para crianças em hospital de Frankfurt, na Alemanha - - Kai Pfaffenbach- 15.dez.2021/Reuters

De fato, resultados parciais dos testes indicam que duas doses da vacina não produzem uma resposta imunológica forte nas crianças dos dois aos quatro anos de idade. Resultados dos testes com a terceira dose da vacina devem surgir apenas dentro de algumas semanas.

As companhias solicitaram a autorização por insistência da FDA, o que também é altamente incomum. No passado, o avanço rápido da pandemia forçou as autoridades federais de saúde americanas a tomar decisões importantes com base em dados limitados, e elas argumentam que é importante começar a vacinar as crianças pequenas agora, antes que surja uma variante nova e potencialmente mais perigosa.

Mas a revisão de dados incompletos pela agência como base para uma possível autorização alarmou alguns especialistas.

"Jamais agimos dessa maneira antes; é isso que me faz hesitar", disse o médico Gregory Poland, fundador e diretor do Grupo de Pesquisa de Vacinas Mayo, em Minnesota, e editor-chefe da publicação científica Vaccine. "O fato de que não existam mais dados me desagrada".

A terceira dose provavelmente ajudará crianças pequenas a desenvolver imunidade, disseram Poland e diversos outros especialistas, mas não existem garantias de que o faça. Com o recuo da variante ômicron, muitos cientistas sentem que a agência poderia esperar pelos resultados do teste da terceira dose, que devem sair dentro de apenas algumas semanas.

Autorizar uma vacina com antecedência pode solapar a confiança do público no processo regulatório e desestimular os pais, já ansiosos diante da necessidade de vacinar seus filhos, alertam os especialistas. E se a terceira dose simplesmente não funcionar e milhões de crianças já tiverem recebido as duas doses iniciais?

Ainda que crianças em geral não adoeçam seriamente quando infectadas com o coronavírus, o número delas que terminaram internadas cresceu mais durante o surto da ômicron do que em qualquer outro momento da pandemia. Mas múltiplos estudos demonstraram que as crianças hospitalizadas por conta da Covid-19 tendem a ter condições que as predispõem à forma mais severa da doença, incluindo diabetes, doenças pulmonares crônicas ou problemas cardíacos.

Em lugar de autorizar a vacina para todos os 18 milhões de crianças dos seis meses aos quatro anos de idade que existem nos Estados Unidos, a agência poderia considerar recomendá-la apenas para as crianças em situação de alto risco, até que provas mais concretas se tornem disponíveis, disseram alguns especialistas.

Ainda assim, a disparada no número de contágios durante o surto da ômicron levou muitos pais a aguardar com ansiedade a vacina.

"Por um lado, os pais estão desesperados para proteger seus filhos o mais rápido possível. Por outro, há uma desconfiança extrema", disse Natalie Dean, especialista em bioestatística na Universidade Emory, em Atlanta. "O processo todo precisa ser abordado com cuidado e muita transparência".

Os consultores científicos da FDA se reunirão na terça-feira (15) para avaliar os dados correntes, que serão divulgados na sexta (18). O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) pode recomendar um regime de duas doses de vacina para as crianças pequenas pouco depois disso.

O governo Biden prometeu respeitar as recomendações dos consultores. "Por favor, estejam cientes de que a FDA não vai procurar qualquer atalho em seu processo de revisão", disse Vivek Murthy, cirurgião geral dos Estados Unidos [o principal assessor de saúde do Executivo]. "A agência sabe qual é o padrão de conduta em que todos confiamos".

Fachada do prédio da FDA (Food and Drug Administration), órgão que fiscaliza e regula alimentos e remédios nos Estados Unidos
Fachada do prédio da FDA (Food and Drug Administration), órgão que fiscaliza e regula alimentos e remédios nos Estados Unidos - Andrew Kelly - 29.ago.20/Reuters

Como no caso da recomendação de uma dose adicional de vacina para todos os adultos, o esforço para imunizar crianças é parte do plano do governo para o futuro, de acordo com dois funcionários federais familiarizados com as discussões: a variante ômicron pode estar em recuo, mas as crianças precisam ser protegidas antes que chegue a próxima variante.

"Também estamos preocupados com a alta notável no número de crianças que experimentam sintomas duradouros da Covid-19, o que inclui em alguns casos o desenvolvimento de doenças do sistema imunológico e de diabetes tipo 1, depois de elas terem passado pela Covid-19", disse Stephanie Caccomo, porta-voz da FDA.

Mesmo que a vacinação de crianças pequenas comece em abril, o terceiro trimestre chegaria antes de elas terem recebido as três doses, apontou Diego Hijano, médico especialista em doenças infecciosas no St. Jude Children’s Research Hospital e um dos pesquisadores participantes no teste da nova vacina da Pfizer-BioNTech. "E com certeza até o terceiro trimestre podemos ter mais uma variante preocupante se espalhando".

Mas outros pesquisadores disseram que a preparação para o futuro não é motivo suficientemente forte para agir antes dos resultados do teste clínico da terceira dose. O cálculo do custo/benefício para as crianças pequenas é muito diferente daquele que prevalecia no caso dos adultos, no início da pandemia, disse Poland.

"Quando fazemos considerações desse tipo com relação a crianças, não as fazemos em meio à névoa e ao caos da guerra", ele disse.

"Como especialista em vacinas, minha recomendação seria parar e pensar um pouco a respeito", acrescentou Poland sobre a decisão da FDA. "E posso adivinhar que a indecisão vai ser ainda mais longa para a maioria dos pais dos Estados Unidos".

Como especialista em vacinas, minha recomendação seria parar e pensar um pouco a respeito. E posso adivinhar que a indecisão vai ser ainda mais longa para a maioria dos pais dos Estados Unidos

Gregory Poland

Médico, fundador e diretor do Grupo de Pesquisa de Vacinas Mayo

A vacina se provou segura para outras faixas etárias, e mesmo o raro risco de problemas cardíacos em adolescentes dificilmente se aplicará a crianças em idade anterior à puberdade. Mas a hesitação quanto à vacina continua a ser alta entre os pais de crianças menores.

A FDA autorizou a vacina da Pfizer-BioNTech para crianças dos 5 aos 12 anos em outubro. Mas apenas 20% das crianças dessa faixa etária já receberam duas doses da vacina, de acordo com dados do CDC.

A agência está sendo criticada por aprovar um remédio não comprovado contra o mal de Alzheimer, chamado Aduhelm. Uma vacina para crianças menores provavelmente causará ainda mais controvérsia, e qualquer tropeço das autoridades regulatórias poderia ser usado para desacreditar as vacinas, disse Angela Rasmussen, especialista em vírus na Organização de Vacinas e Doenças Infecciosas da Universidade de Saskatchewan, no Canadá.

Avaliar a vacina agora adiantará a autorização por apenas algumas semanas, ela apontou.

"Será que não vale mais a pena esperar para tomar decisões regulatórias seguras e fortemente apoiadas por dados", ela disse "tendo em vista o que pode estar em jogo em longo prazo para a aceitação e a confiança nas vacinas?"

Tradução de Paulo Migliacci.

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