Descrição de chapéu Folhajus

Fazenda na Califórnia e câncer de tia motivaram ação sobre maconha que chegou ao STJ

Antes de obter direito de plantar Cannabis, designer paulista sofreu revés na Justiça; juiz de primeira instância determinou que ele fosse investigado pela PF

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São Paulo

Depois de três temporadas de trabalho na colheita de uma fazenda de maconha no norte da Califórnia (EUA), o designer paulista Bardas (nome fictício), 29, precisou recorrer à Justiça para poder manter, na volta ao Brasil, seu bem-sucedido tratamento para ansiedade e insônia a partir de princípios ativos da Cannabis.

Na última terça-feira (14), a 6ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) concedeu a ele e a outras duas pessoas salvo-conduto para plantação doméstica de maconha e produção de óleos destinados ao uso terapêutico pessoal, sem que isso represente risco de serem investigados, denunciados, presos, julgados ou condenados pelo crime de tráfico de drogas.

Trata-se da primeira decisão favorável ao cultivo doméstico de pacientes para fins terapêuticos pessoais da segunda mais alta câmara do Judiciário brasileiro, o que ajuda a consolidar uma jurisprudência sobre um tema cada vez mais judicializado no Brasil.

Bardas, 29, obteve no STJ (Superior Tribunal de Justiça) salvo conduto para cultivar Cannabis para uso terapêutico
Bardas, 29, obteve no STJ (Superior Tribunal de Justiça) salvo conduto para cultivar Cannabis para uso terapêutico - Karime Xavier/Folhapress

Ainda assim, toda vez que Bardas fala do assunto, suas mãos suam frio. O jovem não imaginou que seu caso chegaria tão longe. Afinal, conta ele, na volta ao Brasil conheceu outras pessoas que obtiveram a mesma decisão logo de cara, em primeira instância, não dois anos depois de iniciada uma batalha judicial pelo tema —que ele conta que nem pretendia encarar.

Ao voltar para o Brasil, Bardas já sabia que sua receita médica americana e o documento de paciente, necessários para a compra de medicamentos à base de Cannabis em solo californiano, não tinham validade.

O caminho brasileiro para adquirir os óleos ricos em CBD (canabidiol) que ele usava nos EUA era obter um pedido médico no Brasil e requerer autorização junto à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para importar os produtos. Mas, no final desse percurso, tinha uma pegadinha: o alto custo dos medicamentos.

Desde 2015 o uso compassivo do canabidiol para fins terapêuticos é permitido no país. Em 2019, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) regulamentou a venda de produtos à base de maconha em farmácias e, em 2020, concedeu registro ao primeiro produto do tipo. Ainda que para a agência esses produtos não sejam remédios e, sim, fitofármacos, a compra depende de prescrição médica com receituário especial.

Como o cultivo de maconha não é permitido no país, os medicamentos ou seus insumos têm que ser importados, resultando em maior custo para o paciente ou para o SUS (Sistema Único de Saúde).

Bardas rapidamente calculou que manter o tratamento custaria cerca de R$ 2.000 ao mês. A conta simplesmente não fechava. Além disso, era frustrante não poder aplicar no Brasil o conhecimento adquirido na Califórnia sobre a lida com a planta e o fabrico dos óleos. A produção doméstica, ele calculava, reduziria os custos a ponto de tornar o uso terapêutico possível também no Brasil.

Ainda assim, a coragem para dar o primeiro passo, diz ele, só veio a partir de uma má notícia: sua tia descobriu um câncer de mama e iniciou um tratamento repleto de efeitos colaterais que, ele sabia, a Cannabis poderia aliviar. Estudos já comprovaram que o canabidiol tem, entre outros, efeito antiemético, auxiliando no combate às náuseas e à falta de apetite típicas das quimioterapias e radioterapias.

Era o incentivo que faltava. Bardas entrou na Justiça com um habeas corpus para poder plantar Cannabis e produzir os óleos necessários ao tratamento da tia e ao seu próprio sem correr o risco de ser encarado como um traficante por causa disso. Animado pelos outros casos que encontrou nas suas pesquisas, iniciou o cultivo das plantas.

Bardas só não imaginava que a mesma Justiça à qual ele recorria em busca de uma solução para seu impasse no exercício do direito à saúde escondia uma arapuca.

"O juiz de primeira instância não só entendeu que o habeas corpus não cabia como determinou que ambos os pacientes fossem investigados pela Polícia Federal e que fosse aberta uma sindicância no Conselho Regional de Medicina contra a psiquiatra que receitou canabidiol para eles", conta a advogada Gabriella Arima, que conduziu o caso com Cecília Galicio, ambas parte da Rede Reforma, que reúne profissionais do direito atuantes no campo da política de drogas.

"Foi um processo em que houve empecilhos grandes e até violações por parte do Judiciário. Mas essas violações foram posteriormente corrigidas pela sensibilidade dos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 3ª região, que reverteram a decisão", conta ela.

Como o Ministério Público Federal recorreu aos dois tribunais superiores, depois da decisão do STJ, resta um recurso pendente no STF (Supremo Tribunal Federal).

Para o advogado Emílio Figueiredo, pioneiro no Brasil no uso do habeas corpus para garantir o cultivo para uso medicinal pessoal, a decisão do STJ confirma a tese "de uso do direito penal para garantir o direito à saúde".

"Em vez de esperar a polícia chegar e fazer as provas, o paciente se antecipa, produz suas provas e as apresenta perante a Justiça, confirmando que quem cultiva Cannabis para fins de tratamento com respaldo médico não pode ser considerado um criminoso", explica ele, também membro da Rede Reforma.

Figueiredo lembra que o STF tem dois processos parados sobre o tema, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade e um recurso extraordinário, e critica também o principal projeto do Legislativo na área, o PL 399.

"Mesmo com todo o avanço que faz, o PL 399 é omisso em relação ao fato social de que pessoas cultivam Cannabis para fins terapêuticos em suas casas. O cultivo doméstico não é nem sequer previsto."

Para Arima, a decisão alcançada por seu cliente no STJ "é importante por ser a primeira por parte de um tribunal superior a reconhecer o habeas corpus como instrumento jurídico de proteção da segurança e da liberdade dos cidadãos que são pacientes, fazem uso medicinal da Cannabis e querem cultivar a própria planta".

"A judicialização vem sendo perseguida por muitos pacientes, mas o ideal é que a gente não precise mais do Judiciário para isso", completa.

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