Hospital das Clínicas cria 1º ambulatório psiquiátrico para vítimas de violência doméstica

Iniciativa partiu de instituto que apoia mulheres desfiguradas pelos parceiros e teve ajuda inicial de emenda parlamentar

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (IPq) acaba de criar o primeiro ambulatório de saúde mental voltado às vítimas de violência doméstica, um problema que aumentou durante a pandemia de Covid-19 e atingiu quase 620 mil mulheres em 2021, segundo dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

O programa está sendo desenvolvido em parceria com o Instituto Um Novo Olhar, que oferece vários tratamentos gratuitos a mulheres vítimas de violência, como cirurgias de reconstrução facial.

A atendente de telemarketing Victoria, 21, que levou 15 facadas do ex-namorado nas costas, tórax, mão e rosto, e é acompanhada pelo Instituto Um Novo Olhar - Karime Xavier/Folhapress

A iniciativa conta com verbas de R$ 500 mil no primeiro ano, que serão destinadas à contratação de médicos, psicólogos e assistentes sociais. Os recursos foram obtidos por meio de uma emenda parlamentar proposta pela deputada federal Maria Rosas (Republicanos-SP).

O projeto tem duração de cinco anos, previsão de mais R$ 3,1 milhões, e meta de atender pelo menos mil vítimas anualmente. A ideia, contudo, é buscar outras parcerias para tornar o ambulatório permanente.

Segundo a cirurgiã e dermatologista Carla Góes, fundadora do Instituto Um Novo Olhar, a instituição já vinha atuando na oferta de outros cuidados a mulheres mutiladas pelos parceiros, como consultorias jurídicas, apoios social e psicológico, tratamentos estéticos para reduzir as cicatrizes, além de cirurgias reparadoras.

Atualmente, 92 mulheres estão sendo acompanhadas, mas faltava a assistência psiquiátrica. "As agressões contra as mulheres geralmente acontecem na face. O companheiro quer desfigurar o rosto. Isso acaba com ela, desenvolve depressão, transtornos de inúmeras formas. Ela precisa de acompanhamento psiquiátrico."

Góes conta que uma das primeiras vítimas que o instituto atendeu, em 2018, foi uma mulher vítima de 17 facadas no rosto desferidas pelo ex-marido, contra o qual já tinha uma medida protetiva. "Ela só sobreviveu ao feminicídio porque fingiu que estava morta e ele fugiu."

A vítima também teve perdas funcionais. Não conseguia falar, não conseguia se alimentar. "Foi mais ou menos um ano para reconstruir a face. A coisa mais emocionante foi quando ela conseguiu esboçar um sorriso."

A reconstrução facial foi feita com prótese de titânio por meio de parceria entre o instituto e o grupo Prevent Senior. O hospital também já cuidou, gratuitamente, de mulheres que tiveram narizes, lábios e orelhas arrancadas.

Góes afirma que quando começou a encaminhar os primeiros casos para o IPq, enfrentou resistência de algumas vítimas que resistiam ao tratamento psiquiátrico.

"Nos dias de hoje, ainda se entende como psiquiatra o médico que vai tratar uma pessoa que está louca. Tem sido um trabalho grande com as nossas voluntárias para que as vítimas cheguem até o IPq. A gente vê a melhora, a evolução. Essas mulheres voltam a se cuidar, a cuidar dos filhos", conta.

Segundo ela, além da barreira do estigma, muitas mulheres não têm condições financeiras para sequer pagar o transporte público até o IPq. O Instituto Um Novo Olhar também tem oferecido ajuda para isso.

A atendente de telemarketing Victoria, 21, é um das que está sob tratamento psiquiátrico. Em 21 de abril de 2021, ela estava dormindo na casa dos pais em São Mateus, zona leste de São Paulo, quando acordou sendo golpeada pelo ex-namorado. Foram 15 facadas nas costas, no abdome, no braço e no rosto. Todas do lado esquerdo do corpo.

Horas antes ela havia terminado o namoro de seis meses após descobrir uma traição. Segundo a mulher, o ex-namorado invadiu a casa dos pais dela e tapou sua boca enquanto a esfaqueava. A jovem ficou cinco dias internada e, depois da alta, entrou em depressão.

Ela afirma que não saía mais de casa e não dormia mais à noite porque tinha medo que ele voltasse para matá-la.

Victoria diz que as coisas começaram a mudar a partir de setembro, quando procurou o instituto para o tratamento das cicatrizes deixadas pelas facadas. Ela afirma se sentir uma nova pessoa e ter resgatado a autoestima. O ex-namorado continua foragido.

Segundo o psiquiatra Wagner Gattaz, presidente do conselho diretor do IPq, além da assistência, o novo ambulatório pretende medir o impacto do tratamento psiquiátrico e psicológico. "Não basta acreditar que estamos fazendo uma coisa boa, os números têm que mostrar a eficácia."

Para ele, a função de um serviço ligado a uma universidade também é criar modelos de tratamentos que possam ser replicados em outros lugares do Brasil e do mundo.

Góes, do Instituto Um Novo Olhar, defende que o tema violência doméstica entre na grade curricular dos novos médicos. "Esses profissionais precisam aprender a lidar com a violência doméstica. Precisam saber que determinadas falas acabam revitimizando essas mulheres. Se não criam vínculos, ela abandona o tratamento."

De acordo com Gattaz, a proposta é também estender a assistência psiquiátrica a outros grupos vítimas de violência doméstica, como crianças e idosos.

Para o psiquiatra, todas as vítimas de violência doméstica são indefesas, mas as crianças e os idosos não têm sequer estratégias intelectuais e cognitivas para lidar com a situação. "A criança violentada acha que aquela é a vida dela, e o idoso, que é obrigado a aceitar essas situações."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.