Descrição de chapéu Seminário Doenças Raras

Pacientes de doenças raras recorrem à cânabis medicinal, alvo de projeto de lei

Produtos à base de componentes da planta são usados para controlar crises epiléticas em pessoas nascidas com síndromes como a de Dravet

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São Paulo

Associações e famílias de pessoas com doenças raras esperam a aprovação de projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados e prevê o plantio de cânabis medicinal no país. A iniciativa estimula o debate, mas avanços dependem de como será a regulamentação.

A filha de Aline Voigt Nadolni, 44, engenheira, começou a usar óleo de cânabis aos 5 anos. Maria Clara, hoje com 14 anos, nasceu com síndrome de Rett, doença genética rara que tem implicações no desenvolvimento neuromotor. Ela passou por um período de convulsões de difícil controle, quando foi internada e intubada.

Folha e óleo de cânabis em uma balança em instalação da Abrace Esperança, uma associação de pacientes
Planta de cânabis da Abrace Esperança, associação que tem autorização judicial para o cultivo e extração do óleo de CBD (canabidiol) - Adriano Vizoni/Folhapress

Depois de tentar ao menos 14 medicações, Aline recorreu à cânabis quando não existiam produtos no Brasil. Em 2014, conseguiu autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para importar óleo de canabidiol.

O produto ajudou a filha a controlar crises epiléticas e também atuou em comorbidades como distúrbios de sono. "Quando minha filha saiu do hospital, parecia uma boneca de pano: o pescoço não sustentava a cabeça, ela não conseguia engolir a saliva. Hoje, a cânabis não controla sozinha as crises. Mas entrou como um pilar para dar estabilidade", diz Aline.

Desde então, Aline relata que os processos burocráticos para importação ficaram mais ágeis. Entretanto, o valor do tratamento, de R$ 2.500 por mês, ainda é alto.

A mãe conta que tentou substituir o óleo importado, mas Maria Clara não se adaptou. "Ela ficou com sono bagunçado porque as plantas são diferentes, e têm outras substâncias que agem no organismo. Mas sabemos de famílias que tentaram óleos importados e a criança não respondeu bem. O tratamento é muito individual", diz

Por isso, ela considera importante a aprovação do PL (projeto de lei) que regulamenta o plantio de cânabis com fins medicinal e industrial. O projeto, que tramita na Câmara, está aguardando a votação de um recurso —caso ele seja negado, segue para o Senado. Segundo deputado Luciano Ducci (PSB-PR), relator do projeto, a expectativa é que ele seja votado entre o fim de março e o início de abril.

Para a advogada Margarete Brito, diretora da Apepi (Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal) no Rio de Janeiro, o projeto de lei é positivo por trazer o debate à sociedade.
Mas ela afirma que, na prática, os avanços para as associações vão depender das exigências conhecidas depois de uma possível aprovação.

Operando sem liminar entre 2019 e 2022, a Apepi atende pacientes com diferentes necessidades, inclusive doenças raras, em um vácuo legal que Margarete chamou de "desobediência civil pacífica". No final da sexta (25), a Apepi recebeu uma sentença em seu favor, com autorização para cultivar a planta em sua fazendo no interior do Rio de Janeiro.

Com mais de 3.000 membros, a associação planta e produz óleo de cânabis com dosagem feita em parceria com a Unicamp ao custo de R$ 180 o frasco, mais anuidade. Segundo Margarete, uma equipe da entidade dá apoio a pacientes que não conseguem arcar com o tratamento. "Nunca deixamos de atender ninguém porque a pessoa não tem dinheiro", diz .

Mãe de uma criança com síndrome rara (CDKL5, que provoca convulsões epiléticas) Margarete afirma que a associação também pode fazer a ponte entre pacientes e médicos caso seja necessário, já que muitos profissionais não têm experiência com a cânabis.

Segundo Li Li Min, chefe do departamento de neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, a medicina alopática se aproxima do uso dessas substâncias, que têm campo vasto de aplicação.

Para ter acesso à cânabis é preciso prescrição médica, recomendada em casos em que estiverem esgotadas opções terapêuticas disponíveis. O tratamento, afirma Min, requer um profissional com experiência para observar efeitos colaterais e ajustar doses.

Em fevereiro, foi lançada a campanha Movimento Roxo para conscientizar sobre as diferentes manifestações da epilepsia relacionadas a doenças raras —que está relacionada a algumas doenças raras, como as síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut. Nesses casos, Min afirma existirem evidências de que a cânabis e derivados ajudam a reduzir crises epiléticas.

Entre pessoas com síndrome de Rett, existem vários relatos positivos do uso de componentes da cânabis, e espera-se o resultado de estudos mais definitivos, afirma Min.

No país cresce o número de registros de produtos à base de cânabis. Segundo a BR Cann (Associação Brasileira das Indústrias de Canabinoides) há 14 novos remédios autorizados para comercialização. Alguns deles já estão nas prateleiras e outros devem chegar até o fim do ano.

As empresas responsáveis têm cinco anos para comprovar, de acordo com resolução da Anvisa, que esses produtos têm eficácia para atender algum tipo de condição de saúde específica. Para Tarso Araújo, diretor-executivo da BR Cann, é muito provável que essas farmacêuticas desenvolvam estudos relacionados adoenças raras —e, caso haja comprovação clínica, registrem seus medicamentos.

Além do óleo à base de cânabis, a filha de Rafael Araujo Mendes, 33, empresário que vive em João Pessoa (PB), usa pomada à base de THC (tetrahidrocanabinol) no tratamento de epidermólise bolhosa, doença rara que causa lesões na pele e mucosas.

Segundo Rafael, isso ajudou na cicatrização e na diminuição da dor que Eloah, 4, sente. Para se ter ideia, a menina precisa de apoio de uma pessoa que a acompanhe na ida à escola, para evitar que ela se machuque —porque as dores são muito fortes.

"Ela passou a querer andar sozinha. Depois que colocamos a pomada, ela se alivia e consegue brincar", afirma Rafael.

O pai afirma que ela começou a usar a pomada ao participar de estudo no hospital Universitário Lauro Wanderley, em João Pessoa.

A dermatologista e coorientadora do estudo Renata Rodrigues, que também é membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia, diz que a conclusão preliminar é que a pomada estimula a cicatrização.

Desenvolvida pela Abrace Esperança (Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança), a pomada ainda não tem autorização para ser produzida.

Para a psicóloga Tárcia Davoglio, que atende pacientes e familiares com doenças raras que usam componentes da cânabis medicinal, essas enfermidades são cercadas de desinformação e a decisão pelo tratamento pode trazer vários desafios.

"O primeiro é superar as próprias dúvidas e preconceitos; nem sempre esse tratamento é bem apoiado pelos profissionais de saúde que atendem a pessoa rara, e ela, ou a família, acaba tomando essa decisão muito sozinha e tendo dificuldades com as prescrições", diz.

Davoglio também afirma que essa decisão pode exigir ativismo e exposição da pessoa ou família para garantir o acesso aos extratos com regularidade, às vezes envolvendo judicializações. "Quase sempre isso acaba aproximando grupos ou associações de pacientes que passam a ter um papel fundamental de suporte social, principalmente quando a pessoa e as famílias não conseguem buscar ajuda psicológica para se fortalecerem", completa ela, que tem familiar que faz uso de cânabis medicinal.

Cassiano Teixeira, fundador da Abrace, espera que a regulamentação de produtos à base de cânabis também chegue a formulações de uso tópico —uma frente que o PL pode ajudar, diz.

Segundo ele, o debate representa um avanço, mas é preciso avaliar exigências que serão feitas caso aprovado. "Temos de esperar para ver quem vai fiscalizar o cultivo, por exemplo. E quem vai financiar os custos para que a lei seja aplicada?", questiona.

Ilustração de várias pessoas diferentes em formas geométricas segurando um vaso de plantas verdes. Ao centro da imagem, uma mulher carrega um vaso com plantas vermelhas
De acordo com a OMS, as patologias raras são aquelas que afetam até 65 pessoas em cada 100 mil. A estimativa é que existam entre 6.000 e 8.000 tipos diferentes destas doenças no mundo. Como são muitas, o diagnóstico costuma ser difícil e demorado, fazendo com que os pacientes sofram por anos sem saber o que têm - Tiago Galo/Arte Folha
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