Descrição de chapéu Governo Bolsonaro Coronavírus

Leia documentos sobre a pandemia escondidos pelo governo Bolsonaro

Órgãos de inteligência alertaram sobre avanço da crise sanitária, recomendaram vacina e criticaram Trump

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Brasília

A Abin (Agência Brasileira de Inteligência) elaborou mais de 1.100 documentos sobre a pandemia da Covid-19, mantidos sob sigilo pelo governo Jair Bolsonaro (PL).

Os papéis alertavam sobre avanço da Covid em todo o Brasil, risco de colapso dos serviços de saúde e funerário e apontavam a vacinação e o distanciamento social como medidas eficientes.

No palco, Bolsonaro coloca a mão na boca ao tossir, sem máscara; ao fundo, governadores usam máscara
O então presidente Jair Bolsonaro (PL), acompanhado de governadores, participa de lançamento do plano nacional de vacinação em dezembro de 2020; demora na imunização, iniciada no ano seguinte, é uma das críticas à gestão - Pedro Ladeira - 16.dez.2020/Folhapress

Os primeiros documentos feitos pela agência são mais detalhados e chegam a criticar ações do governo Donald Trump, nos Estados Unidos, contra a Covid.

O órgão também monitorou a crise nas fronteiras terrestres. Relatório de abril de 2020 mostrou as principais preocupações em diversos pontos do mapa nacional.

Em Pacaraima (RR), a Abin percebeu "fluxos irregulares" de pessoas na fronteira com a Venezuela, "dificultando a aplicação de medidas contra o Covid-19".

Os documentos de inteligência foram originalmente produzidos para o CCOP-Covid (Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19), coordenado pela Casa Civil. Segundo integrantes do governo Bolsonaro, os relatórios chegavam às mãos de assessores de poucos ministros.

O governo Bolsonaro se recusou a entregar cópias destes documentos em pedidos baseados na LAI (Lei de Acesso à Informação). Sob Lula (PT), a Casa Civil liberou o acesso à reportagem em 2023.

O material aberto na gestão petista mostra que os relatórios se tornaram mais sintéticos a partir de junho de 2020. Muitos deles passaram a receber carimbo do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), ainda que tenham sido elaborados por agentes da Abin, e se limitaram a atualizar projeções de casos e mortes da Covid.

A PGR (Procuradoria-Geral da República) pediu para a Abin compartilhar os relatórios sobre a Covid. "O objetivo é avaliar os relatórios para verificar se há eventual fato novo", disse em nota o órgão comandado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras.

A partir de janeiro de 2021, os agentes de inteligência passaram a fazer relatórios sobre a falta de oxigênio no Amazonas, além do risco de a crise se repetir em outras regiões.

À época, Bolsonaro disse que o governo foi "além daquilo que somos obrigados a fazer" na crise do estado. A gestão dele, porém, havia ignorado alertas em série sobre a falta de oxigênio.

"A situação no estado do Amazonas acende um alerta sobre a possibilidade de desabastecimento de oxigênio medicinal nos demais estados da Região Norte", afirma documento de 17 de janeiro.

Dias mais tarde, os agentes de inteligência apontaram a vacinação como medida efetiva para controlar o avanço de variantes da Covid.

Neste documento, que avaliou a crise sanitária em Manaus, a Abin disse que a chance de o vírus sofrer mutações aumentaria em "cenário de descontrole" da pandemia.

Diversos documentos da Abin elaborados no começo da pandemia citaram estudos com conclusões contrárias ao tratamento com a cloroquina e a hidroxicloroquina.

Apesar dos relatórios de inteligência, Bolsonaro usou o Laboratório do Exército, além do corpo diplomático, para produzir e receber doações estrangeiras dos fármacos. O uso da cloroquina foi a principal aposta de Bolsonaro para combater a pandemia, mas os comprimidos acabaram encalhados durante a crise sanitária.

Documento elaborado em 10 de abril 2020, mostra (abaixo) a partir da página 29 que hospitais e governos de diversos países já haviam abandonado este tratamento.

"Hospitais da Suécia estão interrompendo o uso da cloroquina no tratamento de pacientes infectados com o novo coronavírus. A decisão decorre da verificação de casos suspeitos de efeitos colaterais severos, como arritmia, parada cardíaca e enfraquecimento da visão", diz o relatório da Abin.

A Abin ainda avaliou o avanço de crimes ambientais durante a pandemia. A agência elaborou, em maio de 2020, um "briefing" específico sobre "desmatamento, queimada e garimpos".

"Uma nova dimensão, especialmente preocupante, dessa expansão [do garimpo ilegal] é a possibilidade de contágio de populações indígenas pelo novo coronavírus", diz o documento.

Em outro relatório, de março do mesmo ano, a agência tratou do impacto econômico e projetou aumento de preço do trigo.

"A economia brasileira dirige-se para contração nos primeiros dois trimestres de 2020. Os cenários para a trajetória de recuperação do Brasil, na segunda metade deste ano, são objeto de controvérsia", afirma ainda o relatório.

Os documentos da agência alertaram diversas vezes sobre desgaste político que o governo poderia sofrer com o colapso de serviços de saúde e funerários.

Em documento de 19 de maio de 2020, os agentes afirmaram que prováveis falhas no sistema funerário poderiam "acarretar graves consequências sociais, impactando a percepção sobre as ações estatais de enfrentamento à pandemia e, no limite, a própria confiança da população no Estado".

A agência acompanhou tentativas de governos estaduais e municipais de restringir a circulação de pessoas. O presidente Bolsonaro foi um dos maiores opositores deste tipo de medida.

Em documento de maio de 2020, a Abin avaliou que o "isolamento social no Brasil vem diminuindo", "a despeito da curva ascendente de casos e esgotamento de leitos em diversos estados". No mesmo relatório, afirma que medidas deste tipo devem ser acompanhadas de forte campanha de comunicação.

Em junho de 2020, a Abin elaborou relatório específico sobre o "desgaste na imagem" do governo causado pela decisão de censurar dados sobre a Covid.

"A consequência desta situação específica é o ministério perder espaço político e controle das informações prestadas e, com isso, há redução na transparência dos dados brasileiros, o que dificultaria a tomada de decisão nos estados e a adoção de ações e políticas para refrear a epidemia no país", disse o relatório.

O documento ainda citou risco de boicotes internacionais ao país e disse que a Saúde ainda não havia publicado "padrões técnicos" para combate e avaliação da pandemia nos estados e municípios.

A agência de inteligência também percebeu ainda mudanças na rota da cocaína do Peru ao Brasil por causa das restrições de mobilidade impostas por governos.

Documento de abril de 2020 afirmou que a região Norte brasileira passou a ser "alternativa para narcotraficantes concentrarem suas rotas".

Em outro informe, de 11 de maio do mesmo ano, a agência apontou risco de disputas de facções no Amazonas em plena pandemia.

"Há riscos de realização de massacres em unidades prisionais e de elevação rápida dos níveis de violência nas principais cidades do estado, que já vive processo de saturação das estruturas estatais em função da pandemia da Covid-19", diz o documento.

Os documentos feitos pelo GSI também avaliaram políticas de distribuição das vacinas da Covid de diversos países, além dos imunizantes em desenvolvimento.

Durante a pandemia, porém, Bolsonaro atuou como um vetor de desinformação sobre a imunização contra o novo coronavírus.

INTEGRANTES DO ANTIGO GOVERNO NÃO SE MANIFESTARAM

Militares ocuparam postos-chave do governo Bolsonaro no combate à pandemia. Os generais da reserva e ex-ministros Augusto Heleno (GSI), Braga Netto (Casa Civil) e Eduardo Pazuello (Saúde), foram questionados pela Folha sobre os relatórios, mas não quiseram se manifestar.

O ex-presidente Bolsonaro e o ex-chefe da Abin e atual deputado federal, Alexandre Ramagem (PL-RJ), também não responderam à reportagem.

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