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'Saí porque faltou um olhar humanizado', diz Nelson Teich sobre pasta da Saúde sob Bolsonaro

Oncologista ficou apenas 28 dias na chefia da Saúde após divergências com o ex-presidente sobre condução da pandemia

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Rio de Janeiro

Aos 66 anos, o oncologista Nelson Teich tenta se desvincular da imagem pela qual ficou conhecido na pandemia da Covid, quando foi ministro da Saúde pelo tempo mais curto da história: 28 dias.

Nelson Teich, ex-ministro da Saúde e oncologista, durante fala no Congresso Todos Juntos contra o Câncer, em São Paulo. - Jardiel Carvalho - 26.set.23/Folhapress

Agora, ele procura aparecer mais como um gestor de saúde, focado principalmente em dar consultorias e ajudar na gestão de hospitais e políticas de saúde no setor público e privado. "Embora seja uma pessoa voltada para a gestão de saúde, meu foco é na gestão pública. Apesar disso, entendo que o Ministério da Saúde precisa olhar para a saúde como um todo, não só o SUS [Sistema Único de Saúde]", diz.

Ele afirma que não integra partido algum, como também não era filiado quando aceitou o convite de Jair Bolsonaro (PL) para chefiar a pasta da Saúde. Por isso, não se arrepende de ter aceitado o convite, mas também não se arrepende de ter deixado o cargo.

"Saí porque faltou um olhar humanizado. Tinha um lado humano ali, de mostrar preocupação com as pessoas e mostrar que você sofria com elas que era fundamental, e ele faltou", disse Teich, em entrevista à Folha no Rio de Janeiro, durante o XXIV Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica, em novembro. O médico recebeu na ocasião o prêmio Ronaldo Ribeiro de Carreira em Oncologia Clínica.

Diferente dos outros ex-ministros que passaram pela gestão Bolsonaro, Teich não procurou se lançar com algum cargo político após —Eduardo Pazuello, eleito deputado federal pelo PL; Luiz Henrique Mandetta, do União Brasil, se candidatou a senador pelo Mato Grosso do Sul, mas perdeu para a Tereza Cristina, do Progressistas, enquanto Marcelo Queiroga foi eleito senador pela Paraíba, também pelo PL. Já Teich tem trabalhado para ajudar a implementar a Lei de Prevenção e Controle do Câncer, que foi aprovada pelo Senado no último dia 22.

Qual a lição que fica, olhando agora para trás, do período que o senhor fez parte da Saúde? E como avalia a gestão atual?
Foi um período muito difícil [da pandemia]. Faltou uma visão mais técnica, científica na condução. Esse foi um erro mortal [da ex-gestão]. Em todos os sentidos [se referindo aos mais de 700 mil mortos pela pandemia no Brasil].

Já a gestão atual tem mais foco na saúde do que a anterior, consequência também do governo anterior ter focado mais em questões ideológicas acima de qualquer coisa.

O sr. se arrepende de ter aceitado o convite?
De jeito nenhum.

E se arrepende de ter deixado?
De jeito nenhum. A minha saída, ela não ocorreu por causa da cloroquina; a cloroquina só mostrou o que seria a condução do governo. A minha saída foi porque eu não conseguiria liderar e conduzir como deveria.

O que, subsequentemente com os outros ministros, ficou claro...
Exatamente. Ficou claro. Infelizmente, teve esse acúmulo de mortes muito por causa disso também. Isso provavelmente ocorreu em outras áreas [a interferência na condução], só que a gente não via, enquanto a saúde é muito evidente, ainda mais no meio de uma pandemia. Tinha um lado humano ali, de mostrar preocupação com as pessoas e mostrar que você sofria com elas, que era fundamental, e ele faltou.

Qual a perspectiva do câncer no Brasil?
A nossa gestão em saúde não consegue acompanhar a evolução da complexidade [nos tratamentos], da inovação e do custo. O governo gasta, por paciente, cerca de R$ 2.000 por ano pelo SUS, se você olhar o Reino Unido, ele gasta cerca de R$ 21 mil (equivalente a £ 3.500). Por isso, não dá para pensar só pelo olhar da saúde pública, porque a gente precisa da saúde suplementar também que é, ela própria, muito heterogênea.

Então uma coisa que tenho discutido hoje é que o governo não pode se colocar como ‘Ministério do SUS’. Ele tem que ser do país, é um erro assumir que só porque alguém tem plano de saúde ele é bem valorado, ou que ele não vai depender em algum momento do público. Nós vimos isso na pandemia.

O ex-ministro da Saúde e oncologista, Nelson Teich, em entrevista à Folha durante o XXIV Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica, no Windsor Barra, Rio de Janeiro
O ex-ministro da Saúde e oncologista, Nelson Teich, em entrevista à Folha durante o XXIV Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica, no Windsor Barra, Rio de Janeiro - Ana Bottallo/Folhapress

É claro que aqueles que dependem exclusivamente do SUS precisam de mais suporte, e a gente tem um número elevado de municípios no Brasil cujo PIB per capita é abaixo da linha da pobreza. Mas essas pessoas dependem do Estado em todas as esferas, não só na saúde.

Por isso, estou trabalhando na lei de Prevenção e Controle do Câncer, porque é importante conseguir que algo aconteça na prática, saia do papel. O que você mais tem hoje são leis que estão no papel, mas não acontecem na prática, isso em relação à prevenção do câncer.

Hoje em dia, não existe um Brasil médio. Você tem que trabalhar de forma regionalizada.

O que falta fazer, quando falamos de política de prevenção e promoção da saúde?
Quando a gente fala em prevenção, precisamos definir o que queremos dizer. Porque se você pega a prevenção primária, que é evitar que a pessoa tenha a doença, é uma coisa. Agora, quando falamos de diagnóstico precoce, isso é outra, e o SUS precisa caminhar para isso.

Não adianta falar que a pessoa tem que se alimentar bem, fazer exercício físico, descansar, quando a realidade é que temos 21 milhões de pessoas passando fome e mais de 70 milhões têm insegurança alimentar, não sabem se vão conseguir comer. Cerca de 15% não tem água potável. Se você quer perguntar quantas porções de frutas, legumes e verduras a pessoa está comendo, se ele não tem sequer dinheiro para comprar os alimentos naturais, como vamos fazer essa mudança?

O que eu penso é que essa prevenção, na teoria, é perfeita, mas como política pública, a possibilidade de dar certo é quase zero. Você tem que se preocupar em cuidar das pessoas que hoje já estão demandando acesso à saúde e não conseguem.

O maior gargalo é que os pacientes chegam muito avançados? Como contornar esse problema?
O Brasil tem uma posição de destaque em saúde em várias áreas, mas é difícil manter isso. Você tem que ter as condições de entregar aquela gestão em saúde. Porque quando você faz um programa de diagnóstico precoce, não adianta você lançar se não prepara o sistema para cuidar da pessoa como um todo. Então você faz um mutirão de mamografia, mas não tem cirurgiões para operar, você cria um gargalo. E tem a questão também da tecnologia, se tem as máquinas mais adequadas para fazer os exames, se existem profissionais que sabem manusear, tudo isso. Não é simples. Faltam médicos, faltam profissionais de saúde, mas falta também organização do sistema.

Quando a gente discute política pública, se você começa a ir no detalhe, é tanta coisa que tem que trabalhar ao mesmo tempo. E o que eu vejo hoje é que as discussões são meio supersticiais. Elas não trabalham na complexidade necessária. A Covid, ela veio para mostrar as fragilidades do sistema, mas isso já existia para outras doenças. Só que como essa informação não era disponível [para a população], isso não chocava.

A jornalista viajou ao Rio de Janeiro a convite da Sboc.

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