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Entidades pedem liminar para suspender norma que restringe aborto legal

Para elas, veto a procedimento usado na interrupção da gravidez é inconstitucional e penaliza mulheres e meninas vulneráveis

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São Paulo

Entidades de saúde protocolaram nesta sexta (5) pedido de liminar no STF (Supremo Tribunal Federal) solicitando a suspensão da resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que proíbe médicos de realizar um procedimento necessário para a interrupção de gestações acima de 22 semanas resultantes de estupro.

O pedido de liminar foi incluído em uma ação já em andamento, a ADPF 989 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), ingressada pelo Centro de Estudos em Saúde (Cebes), pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), pela RedeUnida e pelo Psol (Partido Socialismo e Liberdade).

Ato em frente ao Ministério Público Federal, em protesto contra juíza do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que tentou impedir uma menina de 11 anos de realizar aborto legal após ser estuprada em Santa Catarina - Bruno Santos-23.jun.2022/Folhapress

Segundo o documento, a resolução do CFM estipulou grave restrição à realização do aborto legal para vítimas de estupro ao vetar a realização da assistolia fetal, procedimento recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) que consiste em uma injeção de produtos químicos que interrompem os batimentos cardíacos e é realizado antes da retirada do feto do útero.

Nas primeiras 48 horas após a publicação da norma do CFM, ao menos quatro meninas vítimas de estupro com gestações acima de 22 semanas não conseguiram fazer o aborto legal porque os médicos temem represálias do conselho, conforme revelou a Folha.

Um desses casos é de uma menina de 12 anos que está grávida de 27 semanas. Há autorização judicial para o aborto mas, mesmo assim, a equipe médica teme sofrer represálias do CFM.

"Estamos recebendo várias queixas de médicos, do Amazonas ao Nordeste, de meninas que estão chegando com gestações mais avançadas para interrupção da gravidez e os médicos não estão sabendo o que fazer porque se sentem proibidos pelo CFM", afirmou Rosires Pereira, presidente da comissão de violência sexual e interrupção da gestação prevista em lei da Febrasgo, federação que reúne ginecologistas e obstetras brasileiros.

De acordo com as ação, a decisão do CFM contraria a orientação da OMS e representa uma "clara afronta tanto a um consenso sanitário internacional quanto restrição expressa de direitos estabelecidos em lei".

"A OMS expressamente estabeleceu o procedimento (assistolia fetal) como sendo o melhor padrão em termos de medicina baseada em evidências e como parâmetro civilizatório científico para os seus Estados membros", diz um trecho.

Para as entidades de saúde, a tentativa de proibir o procedimento de assistolia fetal após 22 semanas é uma violência adicional contra crianças e mulheres estupradas, uma vez que o acesso tardio ao aborto legal reflete a iniquidade na assistência, atingindo de forma desproporcional crianças, mulheres pobres, pretas e moradoras da zona rural.

"Os serviços de saúde deveriam assegurar o atendimento imediato, seguro e humanizado, inclusive com oferta de contracepção emergencial, quando aplicável. A falha nesta assistência, a detecção tardia de estupro de vulnerável ou de condição incompatível com a vida extrauterina não podem justificar a negativa de um direito", dizem.

Outro argumento é que o Código Penal brasileiro não impõe limite de tempo ao aborto legal. "É abusiva a tentativa do CFM de distorcer tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, e estabelecer norma que contraria legislação vigente e a política de assistência à Saúde. Sem base legal, a resolução gera insegurança na prática profissional e coloca em risco a assistência a populações vulnerabilizadas."

O entendimento é que a resolução do CFM é um ato administrativo, decorrente da atividade de uma autarquia federal, e que restringe um direito estabelecido em lei desde 1940, "o que afronta o direito fundamental da legalidade estrita prevista na Constituição Federal, que prevê que apenas outra lei pode proibir alguém de fazer algo ou de exercer o seu direito".

Para o advogado Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e um dos autores das ações, é preciso lembrar que o Brasil é uma das regiões mais violentas contra meninas e mulheres no mundo.

"Quando a mais grave das violências acontece contra elas, e precisam de direitos e acolhimento, se deparam com barreiras. A resolução é uma das mais graves barreiras já postas a quem deveria acolher."

Na prática, segundo ele, os médicos estão indo contra consensos científicos internacionais. "E, enquanto ficam de mãos atadas, a gestação de meninas vítimas de estupro coloca a vida delas em risco, e eles nada podem fazer sem que arrisquem sofrerem punições, incluindo não poderem mais ser médicos."

Em entrevista a jornalistas concedida pelo CFM nesta quinta (4), o ginecologista e obstetra Raphael Câmara Parente, relator da resolução, negou que a norma seja inconstitucional ou que vá prejudicar meninas e mulheres mais vulneráveis que não têm acesso ao aborto legal antes das 22 semanas. "Qualquer maternidade do Brasil pode fazer aborto de primeiro trimestre", disse.

Questionado pela Folha sobre a razão de o CFM proibir um procedimento recomendado pela OMS, Parente respondeu que tanto a organização quanto a Folha têm conflitos de interesse em relação ao aborto.

"A OMS é assumidamente, assim como a Folha é, a favor da descriminalização do aborto em qualquer circunstância e em qualquer idade gestacional. A OMS tem lado nessa história, é a favor da liberação do aborto, de matar bebê em qualquer idade gestacional."

Não é verdade que a Folha defenda o direito ao aborto em qualquer idade gestacional.

No editorial Legalizar drogas leves, aborto e eutanásia, publicado em 23 de março, a Folha afirma: "Seguir o que democracias avançadas preconizam seria proveitoso para o Brasil também no caso do aborto por opção. Fixar um período máximo, nas semanas iniciais da gravidez, em que o procedimento é permitido e pode ser realizado no sistema público de saúde equilibra o direito da mulher sobre o seu corpo com o do nascituro".

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