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São Paulo resiste a fim de manicômios judiciários defendendo estrutura de hospitais de custódia

Estado concentra mais de um terço dos pacientes psiquiátricos em conflito com a Justiça

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Foto geral de uma das alas da instituição a partir de uma guarita de segurança Rubens Cavallari/Folhapress

São Paulo

A visão do HCTP I (Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico), em Franco da Rocha (SP), não remete às fotos mais populares de manicômios.

Os locais são limpos e reformados, os pavilhões têm colchões e cobertores suficientes para todos, além de uma televisão. Há um campo de futebol onde são realizados torneios, ateliê de arte e uma escola.

Para Luiz Henrique Negrão, diretor do hospital, o mais importante é fazer disseminar essa mensagem em meio à ameaça de fechamento do local. A reportagem foi proibida de fotografar as grades que fecham celas e dividem espaços da instituição.

Paciente de braços durante evento evangélico na ala feminina da instituição. Ao fundo, a parede e a torre de segurança da ala. - Rubens Cavallari/Folhapress

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) determinou, em fevereiro do ano passado, a desativação dos manicômios judiciários —locais para pacientes psiquiátricos em conflito com a Justiça— até agosto deste ano, devido à política antimanicomial no Judiciário.

As instituições abrigam pessoas com transtornos mentais que foram consideradas inimputáveis ou semi-imputáveis, ou seja, aquelas pessoas que não podem ser responsabilizadas por seus atos porque, no momento do delito, não entendiam o que ele significava. Elas chegam a esses espaços para cumprirem uma medida de segurança.

A resolução 487 do CNJ, publicada em fevereiro de 2023, determina que essas pessoas devem ser cuidadas pelo Ministério da Saúde, e não pela Administração Penitenciária. Isso significa que a prioridade é seu tratamento, e não a detenção.

Pelo menos 16 dos 26 estados brasileiros já conseguiram interditar os manicômios judiciários total ou parcialmente, mas São Paulo resiste. O estado tem 937 pacientes divididos em três locais —o HCTP I, visitado pela reportagem, HCTP II, no mesmo município, e HCTP de Taubaté—, o que representa mais de um terço de toda população de manicômios judiciários do país (cerca de 2.500).

O juiz Paulo Eduardo de Almeida Sorci, responsável pelos pacientes de manicômios judiciários de São Paulo, declarou inconstitucional a resolução do CNJ em decisão judicial publicada em setembro último.

No processo, que autorizava a internação de um paciente, Sorci escreveu que "nenhum centro de assistência psicossocial do estado é dotado da mesma estrutura existente nos HCTPs de São Paulo".

Na quarta-feira (15), a Folha foi recebida por Negrão no HCTP I, dentro de uma reserva ecológica a 44 quilômetros do município de São Paulo, para uma visita guiada. Durante todo o passeio, houve esforço para mostrar um local bonito e humanizado.

Outra visão do hospital inclui muros altos, arames farpados, torres de segurança, câmeras e a detecção de metais necessária para acessar os espaços, como nos presídios.

Quando registrou uma paciente por trás de uma porta engradada, o fotógrafo da Folha ouviu que isso não era correto "porque os pacientes aqui não ficam atrás de grades". O diretor se referia às fotos de pessoas que dormem em celas nos manicômios judiciários. A mulher aguardava no refeitório para ir a uma sala de reunião. As grades, abertas de forma automática, separam espaços de convivência do hospital de custódia.

Na enfermaria do pavilhão feminino, porém, uma das pacientes era mantida em uma cela —um espaço retangular, com um colchão em cima da cama de cimento, fechado com grade. O fotógrafo foi autorizado a registrá-la, mas sem a porta. Segundo a enfermeira chefe, ali "é um hospital, mas também uma prisão" e ressaltou o histórico violento da paciente, que havia arrancado o olho de mais de uma pessoa em momentos de surto.

Paciente isolada em sala da enfermaria da ala feminina do HCTP I. Foto feita sem registrar a grade. - Rubens Cavallari/Folhapress

Na ala feminina, fomos levados a visitar o consultório odontológico, a escola de empreendedorismo em arte e o curso de corte e costura.

"Não tem quem coloque mais dente que eu", afirmou Negrão, e informou do trabalho de quatro dentistas no local —que fabrica suas próprias próteses dentárias. Algumas mulheres, porém, por questões psicológicas, não se adequam a elas, disse uma agente penitenciária.

Neste mês, há uma psiquiatra para todos os atendimentos do hospital. O padrão, segundo a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária), é de um dentista e 31 psiquiatras, além de outros trabalhadores.

No dia da visita, algumas pacientes estavam sendo batizadas na igreja evangélica, em um evento da Comunidade Da Graça Ermelino, e usavam maquiagem.

Com a saúde bucal em dia e maquiadas, entretanto, as mulheres não podem se olhar em espelhos —são proibidos no local para evitar cortes e mutilações. Celulares também não são autorizados.

Nos pavilhões masculinos, cercados por muros altos e espirais de arame farpado, os pacientes ficam livres das 7h às 17h. Fora desse período, ficam trancados nos quartos divididos por tipo de transtorno mental, fechados por portas de metal com pequenas janelas gradeadas.

Para saírem do HCTP I, os pacientes são analisados por um perito que diz se há periculosidade ou não. Esse laudo é submetido ao diretor do hospital, que faz a defesa da liberação e, então, submetido à Justiça. Segundo Negrão, diretor da unidade, às vezes juízes, promotores e até defensores podem se opor à liberação médica.

"Nos manicômios judiciários, quem vai decidir se a pessoa deve ser internada ou não é o juiz, não o médico, porque os juízes ainda aplicam o código penal de 1984 [alterado pela resolução]. O laudo psiquiátrico é opinativo. São vários casos em que a pessoa é mantida internada mesmo contra indicação médica", diz Bruno Shimizu, defensor público do Núcleo Especializado de Situação Carcerária.

Segundo ele, os hospitais de custódia são instituições manicomiais (ou asilares) que não garantem os direitos mínimos de pacientes de saúde mental, como tratamento comunitário, contato familiar, atividades externas e "tudo que é direito da pessoa com sofrimento mental, obrigatório há mais de 20 anos".

Mulher está amordaçada e deitada em um colchão enquanto outras a seguram
Paciente é preparada para sessão de eletrochoque em 1983 no hospital psiquiátrico Juqueri, em Franco da Rocha (SP), onde hoje fica o HCTP I. O Juqueri chegou a ter 16 mil pacientes em meados da década de 1960. - Luiz Carlos Murauskas/Folhapress

Em 2001, o Brasil aprovou a Lei nº 10.216/2001, que ficou conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial. Ela estabelece que é "vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares". Determina ainda que os pacientes devem receber tratamento conforme suas necessidades para reintegração à família, trabalho e comunidade, com livre acesso à comunicação e da maneira menos invasiva possível.

No HCTP I, a média de tempo de internação é de quatro anos. Questionado sobre o que achava da luta antimanicomial, celebrada no dia 18 de maio, Negrão afirmou que não é nem a favor, nem contra, acredita que é necessário "rever muitas coisas", mas que é necessário "reforçar o que já existe".

O diretor recebeu a primeira equipe de transição do sistema penitenciário para o sistema de saúde, chamada EAP (Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei), também na quarta-feira (15), enquanto a Folha estava no local.

A relação entre SAP e Saúde ainda não está bem estabelecida. "Tenho muitas perguntas", disse Negrão à equipe, que contava com quatro psicólogas, uma assistente social e um enfermeiro. A Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo afirma que as equipes estão sendo montadas —ainda não há psiquiatra.

O argumento de quem defende a continuação dos hospitais ou a prorrogação do prazo de fechamento é de que o SUS (Sistema Único de Saúde) não consegue absorver todos os pacientes.

Maria Cecília Marinho Arruda, perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, diz que é de acordo com a lei antimanicomial atrelada à ampliação do número de Residências terapêuticas no SUS [unidades estratégicas no processo de desinstitucionalização de manicômios] e equipes de saúde.

"A gente é de acordo com a lei, mas os estados e municípios não estão preparados. Você não pode simplesmente pôr na rua uma pessoa que não tem autonomia sem um tratamento adequado e digno", diz.

O Ministério da Saúde discorda. "É preciso ampliar a Raps [a rede de atenção psicossocial], mas a atual dá conta", diz o médico Nilton Pereira, diretor do Departamento de Atenção Hospitalar, Domiciliar e de Urgência da pasta.

Apesar da defesa dos hospitais feita por Sorci e os seus diretores, o Tribunal de Justiça de São Paulo afirma que "vem realizando reuniões e estudos para cumprimento definitivo" da resolução do CNJ.

A defensoria do estado acredita que, mesmo a passos lentos, a desinstitucionalização acontecerá.

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