Descrição de chapéu The New York Times

Com quase 6.000 mortes em 6 anos, Baltimore se tornou epicentro de mortes por overdose nos EUA

Cidade passou de protagonista, com medidas públicas para contenção e tratamento de pacientes, a local com maior mortalidade dentre as cidades grandes no país

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Alissa Zhu Nick Thieme Jessica Gallagher
Baltimore | The New York Times

A cidade de Baltimore, em Maryland, tem apresentado uma taxa nunca antes vista de mortes por overdose em cidades grandes nos Estados Unidos.

Nos últimos seis anos, quase 6.000 vidas foram perdidas. A taxa de mortalidade de 2018 a 2022 foi quase o dobro de qualquer outra grande cidade e maior do que quase toda taxa na região de Apalaches, no condado de Wise, durante a crise de medicamentos com opioides, no Centro-Oeste durante o auge dos laboratórios rurais de metanfetamina ou em Nova York durante a epidemia de crack.

Yvonne Holden, mãe de Al, que morreu em 2021 de overdose ao completar 50 anos, em seu apartamento em Baltimore, Maryland, nos Estados Unidos
Yvonne Holden, mãe de Al, que morreu em 2021 de overdose ao completar 50 anos, em seu apartamento em Baltimore, Maryland, nos Estados Unidos - Jessica Gallagher/The New York Times

Há dez anos, esse número era menor: menos de 700 pessoas morriam por drogas a cada ano. E quando os óbitos começaram a subir devido ao fentanil, tão potente que mesmo em doses baixas é fatal, a resposta inicial de Baltimore foi tida como um modelo a ser seguido no país todo.

A cidade estabeleceu metas ambiciosas, distribuiu Narcan (um medicamento que reverte o efeito dos opioides) para todos, experimentou maneiras de encaminhar os pacientes para o tratamento e intensificou campanhas para alertar o público.

Mas vieram outras crises, e as autoridades passaram a ter outras preocupações, como a violência e a pandemia da Covid. Muitos desses esforços para combater as overdoses estagnaram, segundo uma reportagem publicada no The New York Times e The Baltimore Banner.

Os profissionais de saúde começaram a divulgar menos os dados da epidemia. Membros do Conselho da Cidade raramente abordavam ou perguntavam sobre o crescente número de overdoses. O fato de que o status da cidade se tornou muito pior do que qualquer outra de seu tamanho não era conhecido pelo prefeito, pelo vice-prefeito —que havia sido o comissário de saúde durante alguns desses anos— ou por vários membros do conselho até que recentemente lhes fossem mostrados dados compilados por repórteres do Times/Banner.

Hoje, a falta de urgência pela cidade na crescente onda é notada. Desde 2020, o governo estabeleceu metas menos ambiciosas para seus esforços de prevenção de overdoses. O grupo de trabalho que gerencia a crise costumava se reunir mensalmente, mas passou a apenas duas vezes em 2022 e três vezes em 2023. O número de assistências médicas para tentar reanimar pessoas caiu, assim como o de pacientes que recebiam medicação para controle do vício a opioides via Medicaid (sistema de saúde financiado pelo governo americano) e de pessoas em programas de tratamento financiados publicamente.

Brandon Scott, o prefeito da cidade, disse defender a resposta local. Ele diz estar ciente do problema grave de dependência de drogas em Baltimore nas últimas décadas, mas embora a análise possa fornecer uma melhor compreensão da escala, não vai mudar a abordagem de sua administração.

"Este é um problema em que estamos trabalhando muito e que podemos e faremos mais ações", disse Scott, "mas também sabemos que requer muito, muito mais recursos do que a cidade tem".

Quando mostrados os números de mortalidade, outros agentes de saúde da cidade e especialistas ficaram alarmados.

Jackie Ferguson em sua casa. O filho dela, Jaylor Ferguson, jogador do Baltimore Raves, morreu de overdose em 2022
Jackie Ferguson em sua casa. O filho dela, Jaylor Ferguson, jogador do Baltimore Raves, morreu de overdose em 2022 - Jessica Gallagher/The New York Times

Os números são "horripilantes", afirma Laura Herrera Scott, secretária de saúde de Maryland desde 2023, acrescentando: "não implantamos os recursos certos nos lugares certos".

Para examinar a resposta de Baltimore às overdoses, jornalistas do Times e do Banner revisaram milhares de páginas de documentos governamentais e entrevistaram mais de cem funcionários de saúde, terapeutas e pessoas que tinham passado pelo vício em drogas. Os registros e entrevistas revelam a extensão em que as autoridades da cidade falharam em lidar com a crise.

Agências estaduais e municipais rastreiam as mortes, relatando o total geral aos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA. Mas funcionários de Maryland e Baltimore não divulgam informações mais detalhadas sobre as mortes por overdose, citando a privacidade entre médico e paciente. Essa falta de transparência dificultou a conscientização sobre a epidemia e as respostas a ela, disseram ex-funcionários da cidade e trabalhadores comunitários.

No IML estadual, o médico responsável pelos óbitos se recusou a fornecer relatórios completos de autópsia até que o prefeito ganhou um processo judicial compelindo a agência a divulgar as informações, que identificavam quem morreu, onde morreram e como morreram.

Aqueles que foram perdidos representavam uma amostra transversal de Baltimore: cozinheiro, advogado, motorista de ônibus, engenheiro, torneiro mecânico, professor, dono de restaurante, carpinteiro, veterano, médico, vendedor e coordenador de admissões de um centro de reabilitação. Havia também aposentados e desempregados.

Algumas vítimas eram dolorosamente jovens: desde 2020, pelo menos 13 crianças com menos de quatro anos morreram após serem expostas a drogas, de acordo com os relatórios. Homens negros entre 50 e 70 anos estavam entre as principais vítimas.

Algumas mortes por overdose chamam a atenção, mas a maioria é invisível ao público.

Will Miler Jr., com seu filho de três anos, na casa deles em Baltimore. A morte de seu pai chocou toda a comunidade - Jessica Gallagher/The New York Times

O aumento acentuado nas mortes ocorreu enquanto a cidade enfrentava inúmeros desafios: declínio populacional, tensões sobre policiamento, mudanças na prefeitura, aumento de tiroteios e a Covid.

Um aumento perigoso

Autoridades há muito tempo tentaram resolver o problema das drogas na cidade com prisões e policiamento agressivo. A cidade também esteve na vanguarda de estratégias inovadoras de saúde pública para lidar com a dependência. Em 1994, o Departamento de Saúde da cidade foi um dos primeiros do país a iniciar uma troca legal de seringas para interromper a propagação do HIV e de outras doenças transmitidas pelo sangue.

A partir de 2006, a cidade e o estado gastaram milhões para expandir o acesso ao buprenorfina, um dos tratamentos mais eficazes para a dependência de opioides. As mortes por overdose caíram, e Baltimore parecia estar controlando também o problema do avanço da heroína.

Ao mesmo tempo, empresas farmacêuticas estavam inundando farmácias em todo o país com pílulas viciantes para dor. Cerca de 400 mil pílulas de oxicodona começaram a chegar na cidade todas as semanas. Alguns pacientes de dentro e fora da cidade começaram a vender o medicamento, expandindo o mercado ilegal de drogas e facilitando o vício ou as recaídas de usuários.

Donna Bruce, à direita, com a foto de seu filho, Devon Wellington, em seu salão em Baltimore, no dia 6 de abril. As mortes por overdose de fentanil tem chocado a região - Jessica Gallagher/The New York Times

Em nota, a prefeitura disse que a atual crise de fentanil foi desencadeada pelo influxo de pílulas de fabricantes e distribuidores de drogas e que a reportagem do Times e The Banner sobre a resposta da cidade equivale a "culpar erroneamente as vítimas".

A alegação sobre os fabricantes de drogas ecoa uma ação judicial que a cidade está movendo contra mais de uma dúzia de empresas, com julgamento marcado para setembro. Mas a epidemia de opioides era muito menos grave em Baltimore do que em outras partes do país, já que a cidade recebeu um quinto das pílulas por habitante em comparação com outras regiões, segundo dados do DEA (departamento de combate às drogas americano).

A taxa de mortalidade por overdose provocada por oxicodona permaneceu relativamente baixa até meados dos anos 2010, quando o fentanil inundou os mercados ilegais de drogas em todo o país.

Os traficantes começaram a misturar heroína com fentanil, que é até 50 vezes mais potente e pode ser fabricado a partir de compostos químicos baratos. Eles também começaram a misturar fentanil na cocaína, prensando-o em pílulas falsas de prescrição e vendendo-o sozinho. Dados de testes de drogas mostram que agora é praticamente impossível comprar opioides ilegais em Maryland que não tenham sido misturados com ele e outros aditivos perigosos como xilazina, que torna o naloxona —o nome genérico do Narcan— menos eficaz. Atualmente, a heroína raramente é encontrada.

Lisa Filer acende velas no altar dedicado a seu filho, Aidan, que morreu de overdose - Jessica Gallangher/The New York Times

Como o fentanil é combinado com outras substâncias, a distribuição dos grânulos do opioide é desigual. Com apenas uma dose, pode-se chegar ao estado de entorpecimento. A próxima pode ser fatal.

Em 2010, a taxa de mortalidade por overdose estava perto de uma baixa de 20 anos: 29 mortes na cidade para cada 100 mil habitantes. Em 2015, a taxa havia dobrado, depois dobrado novamente três anos depois. Em 2021, era de 190 por 100 mil, e três pessoas morriam em média todos os dias.

Anos de tumulto

Nos anos seguintes, a administração municipal criou uma força-tarefa para planejar uma resposta.

A comissária de saúde da cidade, Leana Wen, distribuiu amplamente o Narcan, e o Departamento de Saúde treinou policiais e o público sobre como usá-lo. Abriu também um "centro de estabilização de crises", um local para encontrar ajuda após uma overdose. Criou um sistema de alerta para enviar grupos de ajuda e testou um "rastreador em tempo real" para ajudar pacientes e médicos a encontrar vagas de tratamento abertas.

A cidade emitiu planos detalhados e priorizou a conscientização pública. Mesmo assim, coordenar uma resposta entre as agências da cidade era difícil.

O Departamento de Justiça resistia a compartilhar dados de overdoses entre as agências, às vezes citando a Lei de Portabilidade e Responsabilidade do Seguro de Saúde, ou HIPAA, a lei federal que protege as informações médicas dos pacientes. Reunir os dados de que ela precisava para entender as tendências em overdoses e tratamento era "quase um ato de Deus", disse Wen, e só ocorreu porque ela e sua equipe tinham um foco quase heroico no tópico.

À medida que as mortes por overdose continuaram a acelerar, a próxima prefeita, Catherine Pugh, recebeu críticas quando se opôs à proliferação de centros de tratamento nos bairros.

Wen deixou a agência em outubro de 2018. Pugh renunciou um ano depois em um escândalo de corrupção, sendo a segunda prefeita acusada criminalmente em uma década.

Quando Scott foi eleito, em novembro de 2020, a pandemia de Covid estava em pleno vigor. Scott, que tinha sido presidente do Conselho Municipal, defendia a criação de locais supervisionados de consumo de drogas como forma de prevenir as mortes, mas estes nunca foram aprovados.

Baltimore também teve uma das maiores taxas de homicídios do país, e a administração municipal priorizou a redução de tiroteios. (Quando os homicídios caíram 20% no ano passado em meio a uma diminuição nacional, Scott creditou os esforços à sua administração)

Enquanto houve três vezes mais mortes por drogas do que homicídios, algumas das iniciativas de overdose começaram a desaparecer nos anos seguintes.

Esforços espalhados

A resposta às overdoses envolve várias agências e grupos comunitários, muitos dos quais recebem financiamento do governo. Trabalhadores de emergência correm para locais onde há suspeitas de overdose e tentam reanimar milhares de pessoas todos os anos, com uma equipe especial fornecendo Narcan e panfletos nas proximidades. Médicos da Universidade Johns Hopkins administram uma clínica médica móvel em uma van em colaboração com a cidade.

Os governos estadual e federal gastam centenas de milhões de dólares por ano combatendo a dependência de drogas em Baltimore e, para tratamento, são gastos cerca de US$ 245 milhões (cerca de R$ 1,26 bi) todo ano via Medicaid.

O trabalho de coordenar todos esses esforços cabe ao Departamento de Saúde da cidade, que administra a equipe de prevenção de overdose exigida pelo estado. O grupo reduziu as reuniões para apenas algumas vezes por ano. Em 2020, lançou um plano de três anos que descreveu como "intencionalmente breve", dada a pandemia. Um dos objetivos era tornar-se "mais orientado para a ação"; outro, listar os passos para obter Narcan. Desde então, a página oficial do departamento não publicou atualizações ou um novo plano.

Em comunicado, o Departamento de Saúde disse que o comitê tinha grupos de trabalho que se reuniam com frequência, mas se recusou a dizer qual era ela ou quais metas havia alcançado.

Com 900 funcionários, o departamento tinha apenas três posições em tempo integral em 2022 para trabalhar na dependência de drogas e saúde mental, que dobraram para seis em 2023 com financiamento estadual. A cidade paga por apenas uma dessas posições.

O departamento apresentou dados sobre mortes por overdose ao Conselho da Cidade só em 2020. Os números mostrados na época eram de 2017 e 2018, quando a taxa de fatalidade era 25% menor do que é agora.

Letitia Dzirasa, vice-prefeita da cidade e que foi comissária de saúde de 2019 a 2023, disse que sabia que a taxa em Baltimore era a mais alta em Maryland, mas não sabia qual a classificação nacional entre todos os condados. Sua sucessora, Ihuoma Emenuga, recusou repetidos pedidos de entrevista.

O número de pacientes no sistema de tratamento público da cidade, que ajuda pessoas pobres e sem seguro com dependência, caiu 16% em 2023 em relação a 2020, mesmo com o aumento do dinheiro gasto nele, de acordo com dados estaduais. O número de pacientes do Medicaid que tratam a dependência de opioides também caiu em milhares.

Autoridades estaduais disseram que a pandemia e uma mudança de política em 2020 que permitiu ao Medicare cobrir custos com medicamentos para tratamento de vício podem ter contribuído para a queda.

O número de pessoas sendo reanimadas após overdose anualmente por trabalhadores de emergência caiu em 2023 em relação a 2018, enquanto as mortes aumentaram significativamente.

Herrera Scott, o secretário de saúde, afirma que a resposta em Maryland precisa ser baseada em uma compreensão sofisticada dos dados. Ele reconhece que o departamento tem desafios com o compartilhamento de dados, mas disse que o estado agora está usando novas tecnologias para direcionar melhor seus esforços e planeja começar a publicar informações sobre mortes em bairros específicos.

Em seu discurso anual em março, Scott disse que estava criando um gabinete de prevenção de overdose. Sua administração, no entanto, forneceu poucos detalhes, exceto que o grupo incluiria os principais líderes da cidade.

Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times.

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