Descrição de chapéu The New York Times drogas

Overdose ou envenenamento? Especialistas debatem sobre como chamar uma morte por drogas

Estigma causado pela associação da morte com o vício preocupa familiares de vítimas que morrem por usar medicamentos controlados que foram adulterados

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Jan Hoffman
The New York Times

O atestado de óbito de Ryan Bagwell, um jovem de 19 anos de Mission, Texas, afirma que ele morreu de overdose de fentanil.

Sua mãe, Sandra Bagwell, diz que isso está errado.

Sandra Bagwell, de Mission, Texas, perdeu o filho, Ryan, em 2022 após um envenenamento por comprimidos de Percocet adulterados com fentanil
Sandra Bagwell, de Mission, Texas, perdeu o filho, Ryan, em 2022 após um envenenamento por comprimidos de Percocet adulterados com fentanil - Verónica Gabriela Cárdenas/The New York Times

Em uma noite de abril de 2022, ele engoliu um frasco inteiro de comprimidos de Percocet, um analgésico prescrito que ele e um amigo compraram mais cedo naquele dia em uma farmácia mexicana logo após a fronteira. Na manhã seguinte, sua mãe o encontrou morto em seu quarto.

Um laboratório federal que analisou os comprimidos a partir de um pedido oficial descobriu que nenhum dos comprimidos testou positivo para Percocet. Mas todos testaram positivo para quantidades letais de fentanil.

"Ryan foi envenenado", disse sua mãe, uma professora de literatura no ensino fundamental.

À medida que milhões de comprimidos contaminados com fentanil inundam os Estados Unidos se passando por medicamentos comuns, famílias enlutadas têm pressionado por uma mudança na linguagem usada para descrever mortes por drogas. Eles querem que líderes de saúde pública, promotores e políticos usem "envenenamento" em vez de "overdose". Em sua visão, overdose sugere que seus entes queridos eram viciados e responsáveis por suas próprias mortes, enquanto "envenenamento" mostra que eles eram vítimas.

"Se eu disser a alguém que meu filho teve overdose, eles assumem que ele era um viciado drogado", disse Stefanie Turner, cofundadora do Texas Against Fentanyl (Texas Contra o Fentanil, em tradução livre), uma organização sem fins lucrativos que pressionou com sucesso o governador Greg Abbott a autorizar campanhas de conscientização em todo o estado sobre o chamado envenenamento por fentanil.

"Se eu disser que meu filho foi envenenado por fentanil, você vai perguntar, 'O que aconteceu?'", acrescentou. "Isso mantém a porta aberta. Mas 'overdose' é uma porta fechada."

Por décadas, overdose tem sido usado por agências federais, estaduais e locais de saúde e aplicação da lei para registrar mortes por drogas. Ele permeou o vocabulário de relatórios de notícias e até da cultura popular. Mas nos últimos dois anos, grupos familiares têm desafiado seu uso reflexivo.

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Ryan morreu depois de engolir um comprimido de um frasco do que acreditava ser Percocet, um tipo de analgésico forte prescrito para tratamento de dores nos EUA - Verónica Gabriela Cárdenas/The New York Times

Eles estão tendo algum sucesso. Em setembro, o Texas começou a exigir que os atestados de óbito digam "envenenamento" ou "toxicidade" em vez de "overdose" se o fentanil for a principal causa. Legislação foi apresentada em Ohio e Illinois para uma mudança semelhante. Um projeto de lei proposto no Tennessee diz que se o fentanil estiver implicado em uma morte, a causa deve ser listada como envenenamento acidental por fentanil, não overdose.

Reuniões com grupos familiares ajudaram a persuadir Anne Milgram, administradora da Administração de Repressão às Drogas, que apreendeu mais de 78 milhões de comprimidos falsos em 2023, a usar rotineiramente "envenenamento por fentanil" em entrevistas e em audiências no Congresso.

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Ryan Bagwell era jovem e, além da mãe, deixou também seu melhor amigo, a cachorra Macy - Verónica Gabriela Cárdenas/The New York Times

Em uma audiência na primavera passada, o deputado Mike Garcia (Republicano) da Califórnia, elogiou a escolha de palavras de Milgram, dizendo: "Você fez um excelente trabalho ao chamar esses casos de 'envenenamentos'. Estes não são overdoses. As vítimas não sabem que estão consumindo fentanil em muitos casos. Elas pensam que estão tomando Xanax, Vicodin, OxyContin [nomes comerciais de medicamentos que contêm opioides]."

No ano passado, esforços para descrever mortes relacionadas ao fentanil como envenenamentos começaram a surgir em projetos de lei e resoluções em vários estados, incluindo Louisiana, Nova Jersey, Ohio, Texas e Virgínia, de acordo com a Conferência Nacional de Legislaturas Estaduais. Tipicamente, esses projetos de lei estabelecem semanas ou meses de "Conscientização sobre Envenenamento por Fentanil" como iniciativas de educação pública.

"A linguagem é realmente importante porque molda políticas e outras respostas", disse Leo Beletsky, especialista em aplicação de políticas de drogas na Faculdade de Direito da Northeastern University. No campo cada vez mais politizado da saúde pública, a escolha das palavras tem se imbuido de um poder de mensagem cada vez maior. Durante a pandemia, por exemplo, o rótulo "anti-vaxxer" caiu em desgraça e foi substituído pelo mais inclusivo "hesitante em relação à vacina".

A dependência é uma área passando por uma mudança de linguagem convulsiva, e palavras como "alcoólatra" e "viciado" são agora frequentemente vistas como redutoras e estigmatizantes. Pesquisas mostram que termos como "abusador de substâncias" podem até influenciar o comportamento de médicos e outros profissionais de saúde em relação aos pacientes.

A palavra "veneno" tem uma força emocional, carregando reverberações da Bíblia e de contos de fadas clássicos. "'Envenenamento' alimenta essa narrativa de vítima-vilão que algumas pessoas estão procurando", disse Sheila Vakharia, pesquisadora sênior da Drug Policy Alliance, um grupo que luta pelos direitos e defesa dos pacientes e familiares.

Mas embora "envenenamento" ofereça a muitas famílias um amortecedor contra o estigma, outros cujos entes queridos morreram ao consumir drogas ilegais de rua acham isso problemático.

Usar "envenenamento" para distinguir certas mortes enquanto permite que outras sejam rotuladas como "overdose" cria uma hierarquia julgadora de fatalidades relacionadas a drogas, dizem eles.

Fay Martin perdeu o filho Ryan, um técnico em elétrica, em 2021 após ingerir um comprimido de opioide alterado com fentanil - Verónica Gabriela Cárdenas/The New York Times

Fay Martin disse que seu filho, Ryan, um eletricista comercial, foi receitado analgésicos opioides para uma lesão no trabalho. Quando ele se tornou dependente deles, um médico interrompeu sua prescrição. Ryan recorreu à heroína. Eventualmente, ele buscou tratamento e ficou sóbrio por um tempo. Mas, envergonhado de sua história de dependência, ele se isolou e gradualmente começou a usar drogas novamente. Acreditando que estava comprando Xanax, ele morreu após tomar um comprimido contaminado com fentanil em 2021, no dia seguinte ao seu 29º aniversário.

Embora ele, como milhares de vítimas, tenha morrido por causa de um comprimido falsificado, sua mãe enlutada sente que os outros a olham com desconfiança.

"Quando meu filho morreu, senti o estigma das pessoas, que havia responsabilidade pessoal envolvida porque ele estava usando drogas ilícitas", disse Martin, que mora em Corpus Christi, Texas. "Mas ele não recebeu o que esperava. Ele não pediu a quantidade de fentanil que estava em seu sistema. Ele não estava tentando morrer. Ele estava tentando ficar chapado."

Para um número crescente de promotores, se alguém foi envenenado por fentanil, então a pessoa que vendeu a droga era um envenenador —alguém que sabia ou deveria saber que o fentanil poderia ser letal. Mais estados estão aprovando leis de homicídio por fentanil.

Críticos observam que a ideia de um vilão-envenenador não leva em consideração as complicações do uso de drogas. "Isso é um pouco simplificado demais, porque muitas pessoas que vendem substâncias ou as compartilham com amigos também estão sofrendo de transtorno de uso de substâncias", disse Rachael Cooper, que dirige uma iniciativa contra o estigma no Shatterproof, uma organização de defesa das vítimas.

As pessoas que vendem ou compartilham drogas geralmente estão muitos passos distantes daqueles que misturaram os lotes. Provavelmente, elas não teriam conhecimento de que suas drogas continham quantidades letais de fentanil, disse Cooper.

"Em um mundo não politizado, 'envenenamento' seria preciso, mas da maneira como está sendo usado agora, está reformulando o que provavelmente é um evento acidental e o reimagina como um crime intencional", disse Beletsky, que dirige o projeto Changing the Narrative da Northeastern, que examina o estigma da dependência.

Na toxicologia e medicina, "overdose" e "veneno" têm definições neutras em termos de valor, disse Kaitlyn Brown, diretora clínica dos Centros de Veneno da América, que representa e coleta dados de 55 centros em todo o país.

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Ryan Paul Malcolm estava em tratamento para o vício, mas quando voltou a usar drogas ele não contou à família. Ele morreu após consumir um comprimido do que ele achava ser Xanax adulterado com fentanil - Verónica Gabriela Cárdenas/The New York Times

"Mas o público vai entender a terminologia de maneira diferente das pessoas imersas no campo, então acho que existem distinções e nuances importantes que o público pode perder", disse ela.

"Overdose" descreve uma dose maior de uma substância do que a considerada segura, disse Brown. O efeito pode ser prejudicial (heroína) ou não (ibuprofeno).

"Envenenamento" significa que o dano de fato ocorreu. Mas pode ser um envenenamento por inúmeras substâncias, incluindo chumbo, álcool e alimentos, bem como fentanil.

Ambos os termos são usados, quer um evento resulte em sobrevivência ou morte.

Até cerca de 15 anos atrás, o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) americano, uma fonte respeitada de dados sobre mortes nacionais por drogas, frequentemente usavam ambos os termos de forma intercambiável. Um relatório do órgão detalhando o aumento das mortes relacionadas a drogas em 2006 foi intitulado "Envenenamento por Drogas Acidental nos Estados Unidos". Também se referia a "mortes acidentais por overdose de drogas".

Urna contendo as cinzas de Ryan, na casa de Fay Martin, sua mãe, em Corpus Christi, Texas - Verónica Gabriela Cárdenas/The New York Times

Para simplificar os crescentes dados de fatalidades por drogas de agências federais e estaduais, o CDC passou a usar exclusivamente "overdose". (Agora também coletam estatísticas sobre overdoses não fatais relatadas.) A Divisão de Prevenção de Overdose do CDC observa que "overdose" se refere apenas a drogas, enquanto "envenenamento" se refere a outras substâncias, como produtos de limpeza.

Perguntados sobre qual palavra ou frase imparcial poderia melhor caracterizar as mortes por drogas, especialistas em política e tratamento de drogas tiveram dificuldades.

Alguns preferiram "overdose", porque está enraizado na geração de dados. Outros usam "overdose acidental" para destacar a falta de intenção. (A maioria das overdoses são, de fato, acidentais.) Os veículos de notícias ocasionalmente usam ambos, relatando que uma overdose de drogas ocorreu devido a envenenamento por fentanil.

Especialistas em medicina da dependência observam que, como a maioria do suprimento de drogas de rua agora é adulterado, "envenenamento" é, de fato, o termo mais direto e preciso. Pacientes que compram cocaína e metanfetamina morrem por causa de fentanil no produto, observam eles. Aqueles viciados em fentanil sucumbem a doses que têm misturas mais tóxicas do que esperavam.

Martin, cujo filho foi morto por fentanil, concorda amargamente. "Ele foi envenenado", disse ela. "Ele recebeu a pena de morte e sua família recebeu uma sentença perpétua."

Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times.

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