Descrição de chapéu
Copa do Mundo

Começamos hoje a saber se jogo bonito é de novo coisa nossa

A seleção de Tite está recuperando aceleradamente a magia e a beleza

Clóvis Rossi
São Paulo

Era uma vez uma época em que jogo bonito era sinônimo de Brasil.

Tão sinônimo que alguns jornais em espanhol e em inglês usavam a expressão "jogo bonito" em português mesmo. Parecia um código para dizer que "jogo bonito" era um patrimônio cultural do Brasil –e somente do Brasil.

Não é fácil datar essa época, mas me arrisco a dizer que ela começou, para os mais velhos, com a dupla Pelé/Garrincha, na Suécia, em 1958. Consolidou-se, no entanto, com a seleção campeã em 1970 –a primeira Copa transmitida diretamente e em cores para o Brasil (e, claro, para o mundo). 

Antes, a gente podia apenas ouvir o "jogo bonito", mas não vê-lo. Ainda assim, a minha geração acreditava piamente que éramos os melhores e jogávamos tão bem que só roubando nos tirariam o título.

Em 1954, o Brasil foi eliminado pela maravilhosa Hungria, em partida apitada por certo Mr. Ellis (Arthur Ellis), que expulsou Nilton Santos e o centroavante Humberto Tozzi, além do húngaro Boszik. Um juiz que expulsa Nilton Santos só pode ser ladrão.

Nas peladas na rua Bartolomeu Zunega, em Pinheiros, onde morava à época, cada vez que o time adversário reclamava de uma falta nossa, gritávamos "Mr. Ellis".

Não entendo como a Hungria perdeu a final para a Alemanha, fato que deu origem à lenda de que futebol é um esporte em que jogam 11 contra 11 e, no final, a Alemanha ganha.

É um pouco de exagero, mas não muito: a Alemanha é a seleção que foi mais vezes às finais das Copas. Esteve em oito e ganhou quatro (o Brasil foi a sete e ganhou cinco).

Nem esse formidável retrospecto dos alemães tirou do Brasil a fama de ser o dono do "jogo bonito". Os alemães tinham a força, mas a beleza era dos brasileiros. Mesmo quando nem chegava à final (em 1982 e 1986, por exemplo), o Brasil era festejado pela qualidade de seu futebol.

Talvez essas duas Copas tenham sido as responsáveis pelo encerramento da era do "jogo bonito", no Mundial seguinte (Itália, 1990).

O brasileiro –o torcedor e parte da crônica esportiva– começou a achar que não tinha graça jogar bem e perder.

Esse espírito impregnou a seleção da Copa de 1990, a começar pela escolha de um técnico absurdamente medíocre (Sebastião Lazaroni).

Na véspera do jogo das oitavas com a Argentina, correu o boato de que eu estava tão seguro de que o Brasil perderia que já havia até reservado passagem para voltar no dia seguinte. Robério Vieira, o "Gata Mansa", assessor de imprensa da CBF (morreu em 2003), veio me cobrar.

Só de pirraça, confirmei que havia marcado o voo (não era verdade). Ele disse: "Azar seu, vai viajar sozinho", pressupondo que o Brasil ganharia.

Terminado o jogo (Argentina 1 a 0), cruzei com "Gata Mansa" no centro de imprensa, e ele, paletó da CBF manchado de lágrimas, me disse: "É, você tinha razão, essa seleção é uma merda". Não poderia haver epitáfio mais autorizado para a era do "jogo bonito".

O Brasil até recuperou o título e por duas vezes (1994, a mais medíocre das Copas, e 2002). Mas permaneceram as dúvidas sobre a qualidade do jogo, que só fizeram aumentar com os fracassos nos três Mundiais seguintes.

O 7 a 1 com a Alemanha até levou ao exagero de transferir o rótulo de "jogo bonito" para os alemães, que, graças à miscigenação e à imigração, afinaram a cintura dura.

A seleção de Tite está recuperando a magia e a beleza, mas só a Copa da Rússia dirá se o "jogo bonito" vence como em 1970 ou morre na praia como em 1982.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.