É 1h49, e a luz vaza pelos cantos da cortina de blecaute do quarto, inviabilizando qualquer tentativa de sono. Uma hora antes, havia um arco-íris lá fora. Quatro horas depois, parece meio-dia.
Fazia tempo em que o fritar na cama não durava a noite inteira. Noite? Em Murmansk, no verão, esse conceito é tão elusivo quanto o motivo da minha visita: buscar sinais da Copa do Mundo na capital do polo Norte russo.
Como o detetive californiano vivido por Al Pacino no brilhante "Insônia" (Christopher Nolan, 2002), me arrasto sob o eterno sol meia-noite pelas ruas da última cidade fundada pelos czares (1916).
Não para resolver um crime, como o personagem tenta num ponto do Alasca com a mesma particularidade dessa cidade russa: a latitude acima do círculo polar Ártico, o que dá apenas três horas sem sol, mas com o céu claro, no verão.
Em dia de jogo do Brasil, nenhum cheiro de Copa nas ruas.
No projeto de boteco ao lado do Estádio Central, a expectativa por um telão é suplantada por uma TV de tubo ligada num canal de notícia.
"E o jogo?", arrisco. "Niet. Zavtra", responde o mal-encarado dono da biboca, indicando que só "amanhã", quando a Rússia jogaria as quartas de final contra a Croácia.
Nem isso: o lugar não abriu no sábado (7).
No campo adjacente, para 15 mil pessoas, uma estrutura estava sendo armada, esperança de um simulacro de Fan Fest ártica.
Mas era só o palco do Dia do Pescador, comemorado neste domingo (8) nesse porto pesqueiro num fiorde do mar de Barents.
O estádio em si é algo cenográfico, com cadeiras pintadas nas cores da bandeira russa, para um time já falecido.
O Futebol Clube Norte, fundado em 1961, jogou a segunda divisão soviética até 1984. Reabriu já na era Vladimir Putin, em 2008, onde rastejou pela terceira divisão russa até falir, em 2014.
A exceção no deserto copeiro é um solitário cartaz de plano de telefonia da Rostelecom, no qual a patrocinadora regional do Mundial tem a logomarca do torneio junto à sua e vende conexão rápida: "Futebol onde você estiver".
Nem um mísero Zabivaka para selfies, gente com a camisa da sensação Rússia. Esses últimos só se materializaram em dois minúsculos grupos andando pela avenida Lênin, no sábado.
Bom, então apelemos a quem ganha dinheiro com isso. Na loja Tiger Sports, no centro, o atendente fala em inglês trêmulo o óbvio: "Aqui gostamos de esportes da neve".
A Copa aqui é anual, conta. Chama-se Festa Setentrional do Esporte e ocorre em março, quando o frio já na casa do 0ºC permite várias modalidades.
Com 299 mil habitantes, 100 mil a menos do que na Guerra Fria, Murmansk tem a economia baseada em pesca (31% do PIB regional), transporte (11,3%) e comércio (9,8%).
Vizinha da Noruega e da Finlândia, talvez seja a cidade russa com maior quantidade de estabelecimentos com o nome iniciado em “Euro”. Putin que não o perceba.
Segundo o governo, a grande esperança é o aquecimento global, que dizimou o gelo de inverno no Ártico em velocidade recorde neste 2018.
Com isso, a rota para Churchill (Canadá) poderá operar quase o ano todo, além do caminho ao leste, usualmente abertos só por quatro meses.
A modesta proliferação de restaurantes, com bacalhau e arenque à frente, é a principal diferença aferível após minha primeira visita, na eleição presidencial no inverno de 2008.
De resto, a impressão é de decadência urbana, apesar de dois blocos da avenida Lênin estarem recebendo pintura nova, um turquesa inominável.
É um lugar esteticamente nada aprazível, resultado da reconstrução após a Segunda Guerra Mundial, na qual a resistência ao nazismo inseriu Murmansk no panteão das 12 "cidades heroicas" da antiga União Soviética
Ela segue estrategicamente importante. Em Severomorsk, 25 km a nordeste, está a Frota Setentrional da Marinha, com seus 12 submarinos armados com mísseis nucleares e muito mais.
Como havia alertado um oficial naval amigo de um amigo em Moscou, jogos, só em bares com TVs exclusivas para isso.
O aplicativo no celular sugere cinco locais. O único dedicado ao futebol, o Hat Trick, fica no porão de um banco e está fechado.
Outros dois têm portas cerradas, restando então o Piatintchk e o Pivnoi Zaboi, distantes 500 metros um do outro, fora do centro.
O primeiro é uma cervejaria hipster saída de um filme de Wes Anderson, com personagens algo caricatos e cores chapadas. Mas a TV funciona e vejo a França matar o Uruguai.
Para a partida do Brasil, arrisco o segundo lugar, um pub de subsolo.
Deu no que deu. Havia oito clientes, com aplausos difusos aos belgas em meio à checagem de seus smartphones. Após a derrota, declino de um drinque insondável oferecido por compaixão pelo barman, Ivan.
A violação do ciclo circadiano cobra seu quinhão em cefaleia, minhas olheiras se parecem com as do sujeito que virou o meme do “psicopata do hexa”. Não quero repetir o protagonista de Pacino, que morre no fim do filme.
Depois o sábado lendo mensagens sobre ser pé-frio por estar no Ártico, retrucando ao reportar os civilizados 15ºC daqui, volto ao pub da véspera para ver a anfitriã jogar.
“Estamos lotados”, disse Ivan, completando: “E você não dá sorte”. Era uma brincadeira, mas, após a derrota russa, achei que foi bom negócio para garantir meu (enfim) sono.
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