Rival do Brasil, seleção jamaicana foi resgatada por filha de Bob Marley

Conhecidas como Reggae Girlz, representantes do país na Copa batalham por apoio

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Jeré Longman
Davie (Flórida) | The New York Times

O cônsul geral da Jamaica no sul da Flórida deu uma festa em sua casa na noite da quarta-feira (22) para celebrar as Reggae Girlz, a primeira seleção de futebol feminino da região do Caribe a conquistar vaga na Copa do Mundo feminina.

Mesas foram montadas em volta da piscina, e as jogadoras e a comissão técnica estavam presentes, mas cada convidado foi solicitado a levar alguma coisa a mais: uma doação de pelo menos US$ 100 para ajudar a Jamaica a concluir seus preparativos para a Copa do Mundo da França, neste mês. O torneio começa na sexta (6), e o tempo, como o dinheiro, é curto.

Se a história do futebol feminino nos últimos anos é a da luta constante pela igualdade de remuneração, sempre existiu uma desigualdade diferente logo abaixo da superfície. O futebol feminino realizou grandes progressos em alguns países, mas o apoio a ele, especialmente o apoio financeiro, das federações nacionais e patrocinadores, varia imensamente.

A França, o país-sede da Copa deste ano, tem uma liga profissional feminina próspera, e as jogadoras estão treinando há semanas para o torneio, no centro de preparação da federação nacional.

Os Estados Unidos, que estarão defendendo seu título, a terceira Copa do Mundo que conquistaram, estão concluindo uma opulenta excursão nacional, com partidas amistosas transmitidas para todo o país pela ESPN e outdoors gigantes divulgando a seleção em edifícios nas grandes cidades.

O caminho da Jamaica para o torneio, por outro lado, foi muito menos visível, e a existência do programa de futebol feminino do país parece muito menos segura financeiramente. Historicamente, as Reggae Girlz recebem apoio escasso da federação nacional. Em 2015, por exemplo, a federação reduziu a zero a verba da seleção feminina.

Assim, antes de embarcarem para a França, as jogadoras jamaicanas primeiro passaram pelo sul da Flórida, para tentar arrecadar dinheiro. Houve um evento de arrecadação de fundos e um leilão de equipamento esportivo na casa do cônsul-geral, e na noite de quinta-feira (23) elas jogaram um amistoso, precedido por uma partida entre celebridades do Haiti e Jamaica.

Mas não é difícil encontrar sinais das dificuldades que o time enfrenta. Na festa da quarta-feira, a comissão técnica usava camisas da seleção masculina de futebol, e rabiscou o apelido do time —“Reggae Boyz”— nas mangas usando canetas hidrográficas.

Algumas jogadoras jamaicanas tiveram de comprar chuteiras para jogar. E quando a seleção se classificou para a Copa do Mundo, em outubro, em um jogo realizado perto de Dallas, diversos membros da comissão técnica foram ao supermercado Costco e compraram agasalhos pagando de seu bolso, para que as jogadoras pudessem treinar no clima frio e chuvoso.

Nenhum dirigente da federação jamaicana estava presente para celebrar a classificação, em uma vitória nos pênaltis contra o Panamá, disseram pessoas da comissão técnica.

“A atitude deles foi bem ruim”, disse a goleira Nicole McClure, 29, sobre a federação jamaicana de futebol. “Somos sempre deixadas de lado, e continuamos a lutar pela igualdade. Queremos nosso lugar à mesa. É muito frustrante”.

Com o objetivo de arrecadar dinheiro para viajar e disputar o Mundial na França, a equipe leiloou itens - Scott McIntyre 23.mai.2019/The New York Times

Em março, McClure, que cresceu em Queens, Nova York, realizou um evento pessoal de arrecadação de fundos. Ela joga de graça para um time da Irlanda do Norte e precisava de dinheiro para comprar comida, produtos de higiene, uma passagem de ônibus, para pagar a taxa de embarque de sua bagagem e adquirir alguns equipamentos de futebol. Outras jogadoras da seleção enfrentam os mesmos problemas.

Mas McClure e as companheiras de time —assim como a comissão técnica jamaicana— reconheceram esta semana que as coisas estavam melhorando, ao menos por enquanto.

As jogadoras jamaicanas que irão à Copa do Mundo assinaram um contrato com a federação e receberão entre US$ 800 e US$ 1.200 mensais, retroativos a janeiro, disse o treinador Hue Menzies. O treinador, que afirmou ter trabalhado de graça desde 2015, vai receber um total de US$ 40 mil. De acordo com dirigentes jamaicanos, essa é a primeira vez que uma equipe feminina do Caribe assinou contratos com uma federação nacional.

“Não fomos pagos”, disse Menzies, rindo, “mas pelo menos assinamos um contrato”.

Michael Ricketts, presidente da federação jamaicana de futebol, disse que as críticas à organização são “terrivelmente injustas”. A federação gastou cerca de US$ 4 milhões com a seleção feminina desde que esta iniciou o processo de eliminatórias para a Copa do Mundo, ele afirmou.

Reunir a equipe para uma semana de treinamento custa US$ 100 mil, disse Ricketts, e é difícil atrair espectadores e patrocinadores para o time. Mesmo assim, ele disse que uma liga de futebol feminino foi reiniciada na Jamaica, em base limitada, e agora há um programa de formação de jogadoras juvenis, para meninas de menos de 15 anos.

Sob as circunstâncias, disse Ricketts, “nos saímos especialmente bem”.

A comissão técnica das Reggae Girlz contesta o valor de US$ 4 milhões. “De jeito nenhum”, afirmou Lorne Donaldson, treinador assistente. “Não acredito nisso”.

As jogadoras e a comissão técnica atribuem crédito a outra benfeitora, Cedella Marley, por retomar a seleção feminina com a ajuda da Bob Marley Foundation, instituição que leva o nome de seu pai.

Menina torcedora agita a bandeira da Jamaica antes do início do jogo de exibição da seleção feminina de futebol do país que aconteceu na Flórida (EUA) - Scott McIntyre 23.mai.2019/The New York Times

Cedella Marley, zangada com a situação lamentável da equipe, liderou um esforço mundial de arrecadação de fundos para reativar a seleção feminina, anos atrás, e foi ela que convenceu Menzies, diretor de um conhecido clube de futebol juvenil perto de Orlando, a se tornar treinador da seleção. Sem Marley, disse McClure, “as Reggae Girlz não existiriam”.

A Alacran Foundation, uma organização filantrópica, também se tornou benfeitora do clube. E a Reggae Girlz Foundation, uma organização sem fins lucrativos, está arrecadando dinheiro para coisas como equipamento médico que ajude a Jamaica a se preparar e competir na Copa do Mundo, mas também para apoiar o time na próxima eliminatória olímpica, e para ajudar nos campeonatos juvenis nacionais.

Mas o dinheiro continuava apertado, quando a seleção partiu para a Europa na sexta-feira (24), onde jogaria um amistoso na Escócia antes de seguir para a França. Mesmo depois de um pagamento inicial de US$ 480 mil pela Fifa, a organização que governa o futebol mundial, por conta da classificação para a Copa do Mundo, e de outro pagamento de pelo menos US$ 750 mil que está por ser realizado, os preparativos jamaicanos para o torneio deixaram um rombo de pelo menos US$ 400 mil, em despesas de preparação, viagens e jogos-treinos, de acordo com Lisa Quarrie, vice-presidente da Reggae Girlz Foundation.

Pensando no longo prazo, a fundação quer bancar o futebol feminino na Jamaica com a criação de uma academia e um sistema amplo de treinamento de juvenis, e quer convencer os times da National Premier League, a maior liga do futebol masculino da Jamaica, a formar times femininos.

Mas é preciso começar pelo começo. A Copa do Mundo está a uma semana de distância, e qualquer doação conta, seja um ingresso de US$ 10 para o jogo entre celebridades na quinta-feira ou uma contribuição de US$ 25 para a Reggae Girlz Foundation.

“Elas precisam de dinheiro para tudo”, disse Quarrie. “Vamos para a Copa do Mundo no improviso”.

O futebol feminino de seleções há muito enfrenta uma batalha difícil para conquistar respeito e apoio. A seleção feminina dos Estados Unidos considerou necessário processar a federação de futebol dos Estados Unidos por discriminação de gênero.

Jogadoras da Austrália e de outros países se recusaram a entrar em campo, e estrelas de outros países se queixaram publicamente de todo tipo de problemas, de falta de jogos a pagamentos baixos por treinos.

Fãs comemoram depois que as Reggae Girlz marcaram um gol durante jogo de exibição - Scott McIntyre 23.mai.2019/The New York Times

No Caribe as coisas são especialmente difíceis, dado o histórico de corrupção no futebol da região e a falta de interesse pelo futebol feminino. Quando Trinidad e Tobago chegou a Dallas para a partida final na eliminatória para a Copa do Mundo feminina de 2015, o treinador do time, Randy Waldrum, usou o Twitter para lançar um SOS financeiro.

“Preciso de AJUDA”, escreveu Waldrum. “T&T mandou a seleção para cá com um total de US$ 500. Não temos equipamento, nem bolas, zero transporte do aeroporto ao hotel, nada”.

A seleção feminina do Haiti também tentou se classificar para a Copa do Mundo de 2015, e o esforço se provou igualmente fútil; o time teve de confiar em benfeitores para bancar seus treinos em South Bend, Indiana. Nem o treinador e nem as jogadoras recebiam salários, e o time tentou se virar vendendo frango assado e camisetas, e realizando clínicas de futebol em escolas e igrejas.

Na Jamaica, muita gente considerava o futebol como esporte bruto demais para mulheres, e pouco feminino. Jogadoras e dirigentes esperam que a presença na Copa do Mundo deste ano ajude a superar esse estereótipo cultural, e que o futebol feminino ganhe força no país mais ou menos como o atletismo ganhou quando a velocista Merlene Ottley conquistou nove medalhas olímpicas entre 1980 e 2000.

“Os homens sempre receberam muito mais apoio”, disse Oliver Mair, cônsul-geral da Jamaica no sul dos Estados Unidos. “Por isso, a classificação das mulheres para a Copa do Mundo nos apanhou de surpresa”.
Ele acrescentou que “quando você toma essa estrada, começa sozinho. Elas tinham um sonho, uma visão, e quando começaram a se dar bem mais pessoas aderiram”.

Por enquanto, Menzies e a comissão técnica vêm contornando a falta de recursos da Jamaica ao ajudar as melhores atletas do futebol jamaicano a encontrar vagas em escolas e universidades dos Estados Unidos, ou em times das ligas americanas e europeias.

Khadija Shaw, conhecida como Bunny, a melhor atacante jamaicana, estudou na Universidade do Tennessee, onde foi considerada a melhor atacante do ano na conferência universitária sudeste, em 2018.

Torcedores aguardam jogo entre a seleção feminina de futebol da Jamaica e o F.C. Surge, na Flórida (EUA) - Scott McIntyre 23.mai.2019/The New York Times

Mais que qualquer atleta, ela personifica a perseverança das Reggae Girlz, tendo persistido em sua carreira mesmo depois que três de seus irmãos foram mortos em incidentes de violência entre gangues na Jamaica.

Kayla McCoy, meio-campista e atacante que joga no Houston Dash, da National Women’s Soccer League dos Estados Unidos, disse que “creio que todas nós nos orgulhamos por termos chegado até aqui, mas também temos um senso de humildade por conta das dificuldades que as pessoas tiveram de enfrentar, por aquilo que elas viram e tiveram de superar”.

Ela acrescentou que “aqui ninguém recebeu coisa alguma de mão beijada”.

O objetivo das Reggae Girlz é sobreviver em um grupo complicado que inclui Brasil, Austrália e Itália. Mas resta a questão de se a federação jamaicana vai oferecer o apoio necessário a manter o futebol feminino em crescimento, e a fazer dele uma força internacional, depois do final do torneio.

Perguntado se confiava em um compromisso de longo prazo da parte da federação, Menzies respondeu que “não muito”.

Mas, acrescentou, “sempre que nos recusam alguma coisa, estão jogando lenha em nossa fogueira”.

Tradução de Paulo Migliacci

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