No primeiro contato que teve com a seleção feminina dos EUA, em 2007, a sueca Pia Sundhage entrou no vestiário, olhou para as atletas e começou a cantar a letra de "The Times They Are A-Changin", de Bob Dylan.
Pia apelou a uma forma inusitada para quebrar o gelo com o elenco, mas o conteúdo de sua mensagem era claro. Como sugere o próprio nome da música, em inglês, "os tempos estavam mudando". E mudaram, com duas medalhas de ouro olímpicas e um vice-campeonato mundial no comando das americanas.
São tempos de mudança que se anunciam também para a seleção brasileira, que nesta terça-feira (30) apresentou a treinadora de 59 anos. Envolvida com o esporte desde os 6, transformou o futebol quase em uma obsessão, a ponto colocar em um cachorro o nome de Pelé-Cruyff-Beckenbauer.
Nascida no vilarejo de Marbäck, na Suécia, cresceu em uma família da classe trabalhadora. Sua mãe era garçonete e seu pai, motorista de ônibus.
Tomou gosto pelo futebol em uma época na qual meninas simplesmente não jogavam bola. Para poder participar de alguma forma, combinou com um treinador que jogaria no time dos meninos com o apelido "Pelle". O disfarce durou três anos, e então ela foi descoberta.
Só com 11 anos de idade é que pôde enfim jogar como menina, e em um time feminino. Desde pequena, já era maior que as colegas, o que lhe dava vantagem atuando como centroavante.
Uma lesão no joelho esquerdo, porém, quase abreviou o sonho de ser jogadora. Do médico, Pia ouviu que mulheres não foram concebidas para jogar futebol. Sua mãe, Karin, agradeceu ao doutor pelo tempo desperdiçado e foi procurar outra clínica. A cirurgia era inevitável e tirou a sueca dos campos por quase dois anos.
A espera foi recompensada com uma trajetória que duraria 20 temporadas como atleta. A cicatriz no joelho esquerdo ainda está lá, marca de outros tempos.
Atacante, construiu uma carreira sólida na Suécia e chegou até a jogar no time feminino da Lazio (ITA). No futebol italiano, ficou somente seis meses e marcou 17 gols, mas aproveitou a estadia na capital para assistir aos clássicos entre Lazio e Roma.
Aprovada na Escola Sueca de Esporte e Ciências da Saúde, decidiu voltar para casa e estudar, conciliando a rotina de atleta com a faculdade.
Seu auge foi com a seleção nacional, campeã da Eurocopa de 1984. Depois de marcar três gols nas duas partidas da semifinal, contra a Itália, foi a responsável pela vitória por 1 a 0 sobre a Inglaterra, no jogo de ida. Na volta, as inglesas devolveram o placar no gramado barrento do estádio da cidade de Luton e a decisão foi para os pênaltis. Pia cobrou o quinto, com força, e fez, coroando a campanha das suecas com o título europeu.
Segundo a federação sueca, marcou 71 gols em 146 jogos somando clubes e seleção.
A decisão de virar técnica ganhou corpo conforme a carreira foi se encerrando. Em seu último clube, o Hammarby, assumiu a condição de jogadora-treinadora e já tinha cadernos e mais cadernos de anotações que foi coletando ao longo dos anos. Em 1996, pendurou as chuteiras, mas não deixou de usá-las.
"Eu sou feliz mesmo é no campo, com um par de chuteiras", disse em uma entrevista ao jornal sueco Norrköppings Tidningar, explicando a razão pela qual recusou o convite de dois presidentes dos Estados Unidos para visitar a Casa Branca. "Aparecer e conhecer gente importante particularmente não me fascina."
Os casos aconteceram depois que a seleção americana conquistou o ouro nos Jogos de Pequim-2008 e foi vice Mundial na Alemanha, em 2011. Declinar da visita a George W. Bush e Barack Obama foi também uma decisão política.
Em entrevista à revista Proletären, publicada pelo Partido Comunista sueco, a treinadora recebeu do repórter os parabéns pela recusa a pisar na Casa Branca. "Obrigado", disse Pia, rindo. "Se eu tiver uma chance de ir à esquerda ou à direita, eu escolherei a esquerda. Quero ser lembrada pelo trabalho com a seleção de futebol feminino dos EUA, não com a Casa Branca. Eu provavelmente não visitaria o rei da Suécia também", afirmou.
Recusas à Casa Branca de lado, Pia entrou para a história do futebol feminino dos EUA.
"Foi uma técnica que não complicou ou superdimensionou a parte tática. Ela reconheceu o talento que tinha à disposição e colocou as atletas onde melhor poderiam render", analisa a jornalista Caitlin Murray, que escreve para o New York Times, o The Guardian e é autora do livro "The Inside Story Of The Women Who Changed Soccer", sobre a história da seleção americana.
Com um jogo bastante direto e apoiado na experiência das jogadoras mais veteranas, a sueca somou 91 vitórias, dez empates e apenas seis derrotas treinando os EUA.
Pia Sundhage é vista como uma figura afável e até cômica em alguns momentos, imagem reforçada pelos sorrisos e cantorias em entrevistas. Dentro do vestiário, porém, é menos maleável do que mostra fora. O que leva, em alguns casos, a conflitos com jogadoras que são referência, como foi nos EUA com a goleira Hope Solo, por exemplo.
Apesar das discussões, justificadas talvez pelo desgaste do tempo (treinou o país de 2007 a 2012), trouxe para dentro do ambiente das jogadoras mudanças culturais importantes. É o que defende Brenda Elsey, pesquisadora e historiadora da Universidade Hofstra, de Nova York.
"Ela é abertamente gay há anos e tenho certeza que isso apresentou uma face totalmente diferente às atletas LGBT, que demonstraram apreço a ela como um ícone sobre o tema", diz Elsey sobre a treinadora, que assumiu sua homossexualidade em 2010.
Com dois ouros olímpicos e um vice mundial à frente dos Estados Unidos, encarou em 2013 o desafio de treinar o próprio país.
Na seleção da Suécia, voltou a apostar em veteranas que pudessem ajudá-la a transmitir a mensagem ao elenco. O que leva a crer que Marta, 33, continuará tendo papel decisivo na seleção brasileira.
Em abril deste ano, no evento "Somos Futebol", organizado pela CBF, Pia veio ao Rio de Janeiro e, durante sua apresentação, na qual cantou Bob Dylan mais uma vez, lamentou nunca ter trabalhado com a atleta seis vezes melhor do mundo. "Ela é especial", afirmou na ocasião.
Sua palestra ganhou a simpatia da CBF, que na figura do presidente Rogério Caboclo contou com um grande entusiasta de sua futura contratação. O anúncio de que viria assumir a seleção, na última semana, também despertou curiosidade nas jogadoras brasileiras da equipe nacional, animadas em contar com ela no país.
A volta ao futebol sueco marca também um ponto de inflexão na maneira de trabalhar de Pia. Enquanto nos Estados Unidos ela se sentia mais cômoda trabalhando no gramado, treinando, na Suécia ela passou a assumir mais responsabilidades na organização da modalidade. O que se espera que possa fazer no Brasil, cujo futebol feminino ainda está em desenvolvimento.
"Ela sempre exigiu ter as jogadoras por mais dias com a seleção, queria interferir na programação física que tínhamos para as atletas. Também reclamava que tínhamos estrangeiras demais. Nós poderíamos facilmente concordar em discordar, sem ressentimentos", comenta Klas Tjebbes, presidente do FC Rosengard, da Suécia, clube em que Marta atuou no país.
Desde 2018, Pia Sundhage comandava a seleção sueca sub-17. Estar em casa significava também estar perto de sua parceira, Marie, que não viveu com a técnica enquanto ela trabalhou nos EUA. Segundo Pia, porque o dia-a-dia não permitiria a ela ser uma boa companheira –conta que, em anos à frente dos EUA, só conseguiu fazer uma compra para o seu apartamento: um sofá.
Das tantas coisas que o futebol lhe deu, o tempo livre provavelmente tenha sido uma das únicas que o esporte lhe privou.
“Tenho respirado futebol desde que cheguei aqui [no Brasil]. É um grande passo para mim, estou orgulhosa e feliz por olhar ao redor e ver futebol, sorrisos e expectativas, eu amo isso", disse a mais nova técnica da seleção brasileira.
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