Queda de testes antidoping na pandemia alimenta suspeitas de trapaças

Número de exames cai de 231 mil para 111 mil nos primeiros 9 meses de 2020

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Matthew Futterman
The New York Times

Os números bastam para contar uma história perturbadora.

Durante os primeiros nove meses de 2019, as organizações de combate a doping recolheram mais de 231 mil amostras de urina e sangue de atletas, para exame em busca de traços de substâncias que melhorem o desempenho.

No mesmo período em 2020, com o coronavírus tendo tornado a coleta de amostras uma atividade de alto risco, as organizações antidoping recolheram cerca de 111 mil amostras. Em abril, quando cidades e países de todo o mundo começaram a adotar medidas de lockdown, apenas 576 amostras foram recolhidas, ante 25.219 no mesmo mês um ano antes.

À medida que a pandemia do coronavírus se espalhava pelo planeta, causando mais de 1,1 milhão de mortes, sua presença resultou em medidas de lockdown e em dificuldades econômicas inimagináveis.

Essas mesmas restrições também restringiram a capacidade das autoridades antidoping para recolher amostras biológicas, e isso, dizem especialistas, criou sérias oportunidades para trapaças, quando a monitoração mais rigorosa dos milhares de atletas que devem competir na Olimpíada de Tóquio, que acontecerá no início do terceiro trimestre de 2021, começar a acontecer.

“Essa é uma preocupação constante, mesmo que não existissem questões relacionadas à Covid”, disse Dick Pound, fundador e primeiro presidente da Wada (Agência Mundial Antidoping, na sigla em inglês).

Com os esportes de inverno, considerados como modalidades de alto risco de doping, prontos a iniciar sua temporada de copas do mundo, e a Olimpíada de Tóquio transferida para daqui a oito meses, as autoridades antidoping afirmam que a necessidade de reconduzir a vigilância aos padrões anteriores é crucial.

Isso é especialmente importante em competições, elas afirmam, porque estas oferecem a melhor oportunidade –se considerarmos as atuais restrições a viagens –de apanhar atletas que estejam usando estimulantes ilegais com efeito imediato sobre seu desempenho.

“Seria ingênuo de nossa parte imaginar que as pessoas não tirarão vantagem dessa oportunidade, desta vez”, disse Travis Tygart, presidente-executivo da Usada (Agência Antidoping dos Estados Unidos, na sigla em inglês).

Tygart sabe que alguns dos cerca de 3.000 atletas radicados nos Estados Unidos que sua agência fiscaliza devem ter usado substâncias ilegais que melhoram seu desempenho. Ele afirmou que atletas chegaram a lhe dizer isso.

Enquanto muitos atletas estavam confinados em suas casas e com pouco a fazer, durante a pandemia, a Usada colaborou com pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte em Greenboro em um levantamento sobre doping. Mais de 1.400 atletas sujeitos à fiscalização da Usada participaram da pesquisa anônima.

Pouco menos de 10% dos respondentes informaram ter consumido substâncias proscritas de melhora de desempenho em algum momento dos 12 meses anteriores, entre os quais 2,5% admitiram ter usado drogas mais potentes, como testosterona, hormônio de crescimento humano e drogas que elevam a produção de glóbulos vermelhos e a capacidade de oxigenação.

Outros 4% disseram ter usado maconha, e os demais dos respondentes que admitiram consumo de substâncias informaram ter usado drogas menos potentes ilicitamente, por exemplo remédios para asma que podem melhorar a capacidade pulmonar, ou drogas que modulam os níveis de hormônios.

Tygart disse que via tudo isso como uma espécie de vitória, já que estudos sobre a presença de doping nos últimos 10 anos haviam registrado admissões anônimas de culpa por parte de até 40% dos respondentes.

Embora os atletas que participaram do estudo da Usada tenham admitido uso de doping em nível muito inferior, eles expressaram profundo ceticismo quanto ao respeito de seus rivais pelas mesmas regras.

Técnico segura tubo de teste com amostra de sangue no laboratório antidoping russo, em Moscou, em 2016
Técnico segura tubo de teste com amostra de sangue no laboratório antidoping russo, em Moscou, em 2016 - Reuters

Mais de 50% dos respondentes afirmaram acreditar que os atletas internacionais tenham usado a pausa nos testes causada pela pandemia como oportunidade para se doparem, e 30% deles afirmaram suspeitar que atletas americanos tenham feito o mesmo.

“Sem exames antidoping, a confiança no sistema cai severamente”, disse Tygart.

E a tentação permanece. Apenas 42% dos atletas pesquisados disseram que a integridade do esporte era mais importante que o ganho financeiro.

James Fitzgerald, porta-voz da Wada, disse que o número de exames antidoping está em alta desde maio, ainda que continue muito inferior ao patamar do ano passado, em parte porque tantas competições, onde grande número de exames ocorre, foram canceladas. Em setembro, 17.643 exames foram conduzidos, em comparação com 26.638 durante o mesmo mês em 2019.

Fitzgerald disse que as organizações antidoping nacionais e regionais estavam fazendo o melhor que podiam a fim de respeitar os limites impostos pelas autoridades de saúde locais sobre suas atividades. Mas acrescentou que a Wada dispõe também de outras ferramentas.

“Embora os exames antidoping sejam importantes como maneira de apanhar trapaceiros e como dissuasão, não são a única estratégia disponível”, disse Fitzgerald.

Existem outros ângulos de ataque que estão sendo empregados, entre os quais investigações e trabalho de inteligência, tecnologia e pesquisa, armazenagem de amostras para análise posterior, e o passaporte biológico do atleta, que é capaz de rastrear mudanças dramáticas nos níveis hormonais e sanguíneos ao longo do tempo.

O dano à integridade do esporte, no entanto, pode já ter sido causado. Estudos demonstraram que apenas um ciclo de uso de substâncias de melhora do desempenho que sejam eliminadas rapidamente pelo organismo basta para produzir efeitos que podem durar por até quatro anos.

Isso certamente faria com que um ciclo acontecido no segundo trimestre deste ano trouxesse resultados que afetarão a Olimpíada do Japão, no terceiro trimestre de 2021, e a Olimpíada de Inverno de Pequim, em fevereiro de 2022.

“É por isso que adotamos uma suspensão de quatro anos para muitas das pessoas que apanhamos”, disse Pound. “Para que o benefício já não esteja lá."

Atletas, dirigentes esportivos e torcedores que aprenderam a contemplar desempenhos excepcionais com alguma medida de ceticismo estavam atentos quando três recordes duradouros de corridas de longa distância foram batidos recentemente.

Os recordes dos 5.000 metros masculinos e femininos e dos 10 mil metros masculinos caíram no começo de outubro. Peres Jepchirchir, do Quênia, bateu o recorde da meia-maratona feminina duas vezes, desde o começo de setembro, a segunda das quais no último fim de semana, na Polônia.

Por mais injusto que seja questionar a validade desses desempenhos sem provas, a escassez de testes causará desconfiança enquanto essa situação perdurar, prejudicando os atletas que competiram e venceram de forma limpa mais do que a quaisquer outros atletas.

“Metade de meu trabalho é ser cético, mas é inerentemente injusto questionar o desempenho de um atleta porque exames não puderam ser realizados, ainda que o atleta em questão não fosse responsável por isso”, disse Tygart. “Eles merecem ser considerados inocentes até prova em contrário."

Tradução de Paulo Migliacci

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.