Descrição de chapéu The New York Times

Colocar a máscara fez com que a voz de Naomi Osaka fosse mais ouvida

Engajada, tenista japonesa foi um dos grandes personagens do esporte em 2020

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Elena Bergeron
The New York Times

Como sempre, a entrevista pós-jogo de Naomi Osaka teve um lado emotivo.

Dois anos antes, ela tinha chegado à fama com uma vitória comovente sobre Serena Williams na final de simples feminina do US Open de 2018, e lá estava ela na frente das câmeras, pequena e exposta, chorando diante de uma audiência que tinha torcido por sua adversária.

Em setembro, depois de Osaka vencer o US Open pela segunda vez, Tom Rinaldi, comentarista da ESPN, pediu que ela explicasse porque havia chegado a cada uma das sete partidas do torneio usando uma máscara que trazia o nome de uma vítima negra de violência racista.

“Qual era a mensagem que você queria enviar?”, perguntou Rinaldi a Osaka.

“Bem, qual foi a mensagem que você recebeu?”, ela replicou. “Sinto que o ponto é fazer com que as pessoas comecem a dialogar."

A resposta dela, que levava jeito de um voleio acertado por reflexo, com uma mistura de precisão e sarcasmo, revelou uma mulher muito diferente daquela que pareceu devastada pelas vaias dolorosas que recebeu no Arthur Ashe Stadium depois de seu primeiro título no torneio.

Ao longo de sua carreira, Osaka vem se descrevendo a entrevistadores como tímida e quieta, mesmo que que Mari, sua irmã mais velha, a compare a Stewie Griffin, personagem da série de animação “The Family Guy” cujo gênio malévolo é constantemente subvertido pelas dificuldades causadas por ele ainda ser um bebê. E essa postura parecia suficiente enquanto Osaka ainda era encarada como uma novata efervescente.

Retrato da tenista Naomi Osaka no estádio Arthur Ashe, em Nova York
Retrato da tenista Naomi Osaka no estádio Arthur Ashe, em Nova York - Chang W. Lee - 12.set.20/The New York Times

Quando surgia a oportunidade de falar abertamente sobre qualquer assunto que a interessasse de forma mais profunda, ela preferia deixar que as palavras se acumulassem em seu interior.

Mas em 2020, Osaka encontrou sua voz e a disposição de se pronunciar sempre que isso a interessasse, o que representa um grande salto para uma superestrela internacional que no passado costumava ser tímida demais para se expressar até mesmo em quadra.

Por ter tempo para se envolver em manifestações de defesa dos direitos civis, em função da pausa que a pandemia gerou no tênis, Osaka encontrou espaço para desemaranhar seus pensamentos e para transmitir uma demanda profunda e inequívoca por mudança.

Ao fazê-lo, ela se tornou tão precisa e eficiente em seus protestos quanto vem sendo em seu tênis, oferecendo sua versão pessoal de poder brando: um ativismo audacioso influenciado por sua compreensão única sobre o planeta e sobre seu lugar nele.

Osaka deixou de lado o manual seguido por outros astros do tênis.

Existe uma facção no tênis que desejava há muito tempo ouvir uma versão mais ensaiada da tenista.

“Desde sempre sou pressionada, seja pela WTA [entidade que comanda o tênis feminino] ou outras partes interessadas, a treinar Naomi a se comportar melhor diante da mídia”, disse seu agente, Stuart Duguid. “Mas sempre achei que isso seria um erro para ela. Não queremos que ela soe forçada, isso seria a última coisa que nos interessaria."

Depois que Osaka pronunciou hesitantemente o que ela mesmo define como “o pior discurso de vitória de todos os tempos”, em Indian Wells em março de 2018, a pressão aumentou, e executivos do mundo do tênis não demoraram a informar a Duguid que o desempenho dela havia desagradado.

E no entanto ele continuou a argumentar que a franqueza de Osaka fazia dela uma estrela com quem os torcedores podiam se identificar. Exibindo o lado sarcástico e a alegria que a irmã adolescente de qualquer pessoa poderia revelar em entrevistas, ela conquistou contratos de patrocínio que provaram que Duguid estava certo.

Osaka rejeitou diversas ofertas de prestígio, mas pouco relacionadas à sua imagem, deixando de lado os contratos de publicidade para carros e relógios de luxo que são marcos do sucesso comercial para um tenista.

Em lugar disso, ela preferiu associar seu nome a marcas que faziam sentido para uma cidadã do mundo e membro da Geração Z. Ela assinou contratos para divulgar o Sony PlayStation e o AirBnb. Formou parcerias com marcas de equipamento esportivo e empresas como BodyArmor SportWater e Hyperice, e iniciou colaborações de moda com a Comme des Garçons e a Adeam, mais presentes em reportagens sobre moda de rua do que entre os sócios de clubes de campo.

Esses contratos elevaram seu faturamento em 2019 a US$ 37 milhões, número que a revista Forbes estimou como o maior valor já faturado por uma esportista em um ano.

Osaka definiu sua trajetória em 2019 como “em forma de U”, e a franqueza e honestidade dela expuseram as dimensões de sua frustração com as dificuldades que enfrentou em quadra depois de suas rápidas vitórias iniciais em torneios de Grand Slam.

Depois de 16 vitórias em partidas de Grand Slam, ela foi eliminada de Roland Garros na terceira rodada, e caiu na primeira rodada, em um resultado chocante, em Wimbledon. Depois de Wimbledon, diversos jornalistas lhe apresentaram variações de uma mesma pergunta –o que há de errado com você?

“Há respostas a perguntas que vocês costumam me fazer que eu ainda não descobri”, ela respondeu secamente a um deles, durante uma entrevista coletiva da qual se retirou depois de dizer ao moderador que “acho que vou chorar”.

Foi um desempenho preocupante –as entrevistas delas depois de jogos traziam a quem as via a sensação de estar assistindo escondido ao exame médico de alguém. Ela revelava apenas tristeza e frustração, sem nenhum esforço para manipular a mensagem.

O ano terminou com uma notícia positiva, a contratação de um novo treinador pela tenista, Wim Fissette, um belga de mente analítica que já tinha trabalhado com outras tenistas que chegaram ao topo do ranking, como Simona Halep, Kim Clijsters e, mais recentemente, Victoria Azarenka.

Depois que ela foi derrubada na terceira rodada do Australian Open, Fissette e Osaka enfim estabeleceram um mecanismo de comunicação. Até aquele momento, eles vinham papeando polidamente sobre os aspectos técnicos do tênis de Osaka, mas não chegavam a discutir seu estado de espírito ao entrar nas partidas.

“Ela não é o tipo de pessoa que lhe conte tudo que você precisa saber assim que você a conhece”, disse Fissette.

Osaka revelou em uma conversa muito franca, semanas depois da derrota, que havia dito ao treinador que as coisas estavam bem quando não estavam. Ela estava encarando imensa pressão por uma vitória na Austrália, e não estava pronta para lidar com um jogo que não lhe foi favorável.

Osaka concordou em se abrir mais, percebendo que revelar seus sentimentos não seria prejudicaria a confiança que ela costuma sentir sobre seu jogo e seu desempenho físico.

“Eu não necessito de tanta ajuda, necessariamente, em termos de estratégia, e sinto que meu jogo é quase sempre bom o bastante para vencer”, ela disse em entrevista por email em novembro. “Mas é evidente que ninguém é capaz de jogar seu melhor tênis todos os dias, e por isso ajuda saber que tenho alguma informação sobre minha adversária caso eu precise. Isso certamente me ajuda a relaxar ao entrar na quadra."

'Tive mais tempo para mim'

O tênis dela obviamente não foi muito testado nos meses seguintes, porque a pandemia paralisou a WTA na metade de março, como aconteceu com as demais grandes ligas esportivas. Osaka usou a pausa para considerar o mundo, de seu ponto de vista.

“Pude me concentrar em coisas fora do tênis e viver minha vida fora do tênis de uma maneira que nunca pude fazer antes, e nem poderei depois”, ela disse. “Pude ter mais tempo para mim, mais tempo para refletir, mais tempo para compreender e testemunhar o mundo ao meu redor."

Informações sobre a maneira pela qual passou esses meses e como isso a mudou começaram a surgir em suas contas de mídia social, onde, em meio a vídeos de concursos de dança de sua família, ela postou imagens de “The Wretched of the Earth”, livro de Franz Fanon, e apareceu em companhia de seu namorado, o rapper Cordae Dunston, se exercitando em bicicletas estacionárias, em uma foto tirada por Colin Kaepernick.

Em meio a muitas séries da Netflix e sessões caseiras de exercício, Osaka dedicou tempo a ler sobre como o Haiti se tornou a primeira república governada por negros no planeta. Isso foi uma sugestão de seu pai, Leonard François, para que ela aprendesse mais sobre seus ancestrais.

Sem o foco aguçado que o calendário do tênis requer, Osaka começou a sentir os efeitos psíquicos da violência contra os americanos negros. No dia seguinte à morte de George Floyd, ela e Dunston viajaram para participar de protestos em Minneapolis, e Osaka mais tarde escreveu um artigo de opinião para a revista Esquire, desafiando a sociedade a “encarar o racismo sistêmico” e afirmando que “a polícia deve nos proteger em lugar de nos matar”.

Ainda que a afirmação de cada parte da identidade de Osaka –japonesa, haitiana, criada por algum tempo nos Estados Unidos– lhe tenha oferecido caminhos lucrativos de patrocínio, ela sempre fez questão de enfatizar seu lado negro mesmo quando os comentaristas o minimizavam.

Essa desconsideração acontecia de modos discretos, como quando um entrevistador de televisão pediu que ela saudasse os torcedores japoneses presentes, depois de uma partida no Australian Open de 2019. Ela agradeceu os torcedores nipônicos, mas em seguida agradeceu também o Haiti.

Com Osaka isolada das interações sociais do dia a dia e sem acesso ao seu trabalho, suas contas no TikTok, Instagram, Facebook, Twitter e outras plataformas ofereciam a maneira mais franca para que ela falasse, como havia prometido.

Quando tuitou seu apoio ao movimento Black Lives Matter, em junho, e encorajou participação em um protesto organizado pelo movimento em Osaka, no Japão, ela foi atacada por “trolls” de mídia social que a chamaram de terrorista, e despertou uma reação negativa dos japoneses, que consideravam a causa como uma preocupação estrangeira.

“Acho que para as pessoas dos Estados Unidos, o movimento Black Lives Matter é algo sobre o que começamos a falar a falar abertamente”, disse Osaka, “mas internacionalmente isso não é tão comum; espero que as coisas tenham mudado”.

Quando o tênis voltou, Osaka decidiu dar destaque a o seu protesto

Um dia antes de sua primeira partida no Western & Southern Open, em agosto, Jacob Blake recebeu um tiro nas costas, de um policial em Kenosha, Wisconsin.

Quando ela chegou às quartas de final, protestos renovados haviam varrido os esportes profissionais americanos, com equipes da NBA, WNBA e MLB optando por suspender seus jogos no dia 26 de agosto.

Osaka saiu da quadra naquele dia planejando abandonar o torneio. Sem conversar com o sindicato das jogadoras, sem uma reunião com sua equipe. Duguid, seu agente, pediu que ela adiasse o anúncio por 10 minutos enquanto ele corria para avisar os patrocinadores da atleta. Assim que isso aconteceu, ela divulgou um anúncio meticulosamente preparado em suas diversas contas de mídia social, para explicar sua posição.

“Antes de ser atleta, sou uma mulher negra”, ela escreveu. “E como mulher negra, sinto que há questões muito mais importantes que merecem atenção imediata, em lugar de me assistir jogando tênis."

Em poucos minutos, Steve Simon, presidente-executivo da WTA, entrou em contato com Duguid para tentar manter a participação dela. Simon, bem como outros dirigentes do tênis e do torneio, por fim concordou em decretar uma pausa na competição.

“Jamais tinha visto tamanha rapidez e a frente unida que esses líderes formaram em um momento muito, muito crítico”, disse Stacey Allaster, diretora de torneio do US Open.

Foi uma exibição clara do poder de Osaka no esporte, uma autoridade que continua a depender pesadamente de suas vitórias.

Quando ela entrou no US Open, muita coisa havia mudado, para ela pessoalmente e no planeta. Fissette disse que nenhum jogador que ele tenha treinado já entrou em um torneio de Grand Slam com a alegria e determinação de Osaka.

Com seu forte desempenho no Western & Southern (ela chegou à final, mas abandonou por conta de uma lesão), um relacionamento mais franco com sua equipe e uma nova expectativa de que suas partidas fossem sempre difíceis, ela chegou ao US Open confiante o bastante para mandar fazer sete máscaras – uma para cada partida necessária a conquistar o título.

“Eu nunca viajo para um torneio sem a expectativa de jogar as sete partidas, e inicialmente, quando pensei sobre a melhor maneira de conscientizar e de honrar as vozes que foram silenciadas, senti que isso era algo que eu tinha de fazer em nível pessoal, por mim mesma”, disse Osaka. “Não achei que, com tudo que estava vendo no mundo ao meu redor, eu pudesse só chegar e jogar, como se nada tivesse acontecido, como se vidas não tivessem sido tiradas injustamente."

Ao chegar ao Ashe Stadium em 1º de setembro para seu primeiro jogo, uma mecha de cabelo e seus fones de ouvido volumosos ocultavam a máscara que levava o nome de Breonna Taylor, 26, trabalhadora do setor de saúde morta em março em uma invasão da polícia ao seu apartamento em Louisville, Kentucky.

A imagem concentrou as atenções em Osaka durante o torneio mais duro do ano, durante o qual ela não tinha sua equipe ou sua família presente para um abraço pós-jogo. Ainda assim, as reações positivas a sua atitude começaram a ecoar dentro da bolha do torneio.

O tenista grego Stefanos Tsitsipas, que enviou uma mensagem de texto a Osaka pedindo que ela lhe explicasse o movimento Black Lives Matter, assistiu às partidas do US Open usando uma camiseta do movimento.

Osaka recebeu muitas mensagens de apoio de torcedores de todo o mundo, em suas contas de mídia social. Em uma entrevista na ESPN, ela pôde ver um vídeo em que as famílias de Ahmaud Arbery e Tamir Rice a agradeciam por recordar as pessoas que eles perderam.

“Quando percebi que muita gente estava comentando, as sete máscaras passaram a ser mais uma inspiração que uma pressão adicional”, disse Osaka. “Não sou o tipo de pessoa que perde a compostura, mas aquele momento me deixou sem palavras e muito comovida."

Agora sabemos como o torneio terminou, como Osaka se recuperou de uma desvantagem de um set e esteve a ponto de perder o jogo, antes de virar e derrotar Azarenka, e sabemos a resposta que ela deu a Rinaldi. Seu triunfo a deixou “completamente exausta – física e mentalmente”, e ela recusou os convites dos programas de entrevistas matutinos no dia seguinte.

Em lugar disso, vestiu uma versão mais curta de um vestido karabela, usado tradicionalmente no Haiti para celebrações, e colocou um turbante nos cabelos para seu retrato oficial como campeã. Mais tarde, ela e a família viajaram ao Haiti a fim de se reconectarem com o passado, uma viagem que ela definiu como “uma experiência maravilhosa e emocionante, que guardarei para sempre”.

Agora, dois anos depois de sua primeira grande vitória e com 2020 chegando ao fim, Osaka ainda não consegue expressar como especificamente sua vida, carreira e objetivos mudaram. “Acho que é algo sobre o que não terei resposta firme por algum tempo”, ela disse.

Quando tiver, ela com certeza nos dirá.

Tradução de Paulo Migliacci

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