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Futebol inglês trava batalha inglória contra racismo nas redes sociais

Clubes, empresas e governo são pressionados por ações concretas diante de novos casos

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Londres

Ser jogador de futebol quase custou a vida do inglês Marvin Sordell. O motivo? As incontáveis ofensas que recebeu ao longo da carreira.

“Acontecia o tempo todo. Eram direcionadas à minha esposa, à minha atuação como jogador, como pessoa, ou era abuso racial”, ele diz em entrevista à Folha. “Recebi ameaças de morte, pessoas dizendo que iriam fazer coisas horríveis comigo.”

Ex-jogador da Premier League e da seleção inglesa sub-21, Sordell tentou suicídio. Procurou ajuda médica e foi diagnosticado com depressão. Decidiu encerrar a carreira aos 28 anos de idade, em 2019. “Isso estava me consumindo. Eu recebia abuso o tempo todo, todos os dias, não importa o que eu fizesse ou dissesse."

Relatos de discriminação, racismo, sexismo e homofobia nas redes sociais são frequentes no futebol inglês. Nas últimas semanas, Axel Tuanzebe e Anthony Martial, do Manchester United, Lauren James, da equipe feminina do mesmo clube, e o irmão dela, Reece James, do Chelsea, foram alguns dos alvos de comentários racistas.

O atacante Marcus Rashford, que também defende o United e é um dos atletas mais admirados da Inglaterra pela campanha que criou contra a fome infantil, foi outra vítima de injúria racial pela internet recentemente.

O roteiro depois dos incidentes é parecido: clubes divulgam notas de repúdio, atletas prestam solidariedade. Mas os episódios continuam. Desta vez, até o príncipe William, que é presidente da Federação de Futebol da Inglaterra (FA), manifestou-se. Disse que o abuso que jogadores recebem na internet é “desprezível e precisa acabar imediatamente".

Na semana passada, um grupo cobrou ações concretas de empresas de tecnologia. Uma carta aberta de dirigentes de entidades como a Premier League e a FA para o Twitter e o Facebook pede que mensagens e postagens com conteúdo racista e discriminatório sejam filtradas e bloqueadas antes da publicação, e que os autores sejam identificados.

Jogador com uniforme vermelho e preto ajoelhado no campo
Marcus Rashford se ajoelha em gesto de apoio ao movimento Vidas Negras Importam - Nick Potts - 14.fev.21/Reuters

“Ainda existe um enorme volume de discurso de ódio sendo publicado e removido muito lentamente. Se alguém publicar um emoji de banana no Twitter na conta de um jogador negro, vai ficar lá por muito tempo. Se houver suspeita de que um conteúdo é criminoso, que exista a obrigação de ajudar as autoridades a identificar os delinquentes. É isso que queremos”, diz Sanjay Bhandari.

Um dos autores do documento e presidente do conselho da Kick It Out, organização que combate o racismo e outras discriminações no futebol inglês, Bhandari acredita que não faltam recursos às grandes empresas de tecnologia.

“Elas sabem onde eu estive, o que tenho interesse em comprar e usam isso para me vender produtos. É questão de usar a tecnologia para cumprir com obrigações legais. Elas já têm essa tecnologia.”

Para Willem Jonker, CEO do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia, organização focada em inovações digitais e apoiada pela União Europeia, o pedido é possível, mas pode gerar outras consequências.

“Se as empresas quiserem bloquear conteúdo, elas criam algoritmos, que não serão perfeitos, mas vão conseguir filtrar uma quantidade significativa de mensagens”, afirma. “Seria preciso algum tipo de supervisão humana sobre o que está sendo bloqueado corretamente ou não, porque o algoritmo não é perfeito e vai cometer erros. Vai haver questionamentos sobre liberdade de expressão. É um equilíbrio.”

Para Jonker, a responsabilidade não é apenas das empresas. “Existe um outro debate sobre quem deve tomar essa decisão: Quem é o juiz nesse caso? A pessoa que faz a reclamação, as empresas de tecnologia ou o governo? Acho que precisamos de um órgão independente.”

“Não queremos ódio e racismo em nossas plataformas, e conteúdos desse tipo são removidos quando encontrados", afirmou em nota a assessoria de imprensa do Instagram, cujo dono é o Facebook. "Continuaremos a trabalhar junto com todos os órgãos da indústria, a polícia e o governo para ajudar a luta contra o racismo online e offline.”

O governo britânico se antecipou. Existe um projeto de lei em andamento que promete endurecer as regras já existentes. O ministro da Cultura, Oliver Dowden, ameaça multar em “bilhões de libras” empresas de tecnologia que falharem em proteger seus usuários. A lei, se aprovada, abrangeria também conteúdos ilegais, como pornografia infantil e terrorismo.

Para Kevin Hylton, professor emérito de Igualdade e Diversidade no Esporte e Educação da Leeds Beckett University, a discriminação na internet também é reflexo do momento político do Reino Unido, somado à pandemia.

“Neste país, houve um aumento da intolerância por causa do Brexit, agora pelo lockdown, porque as pessoas têm mais tempo para escrever mensagens de ódio”, diz. “Nessa questão, os assediadores estão ganhando porque estão ficando impunes.”

Hylton atribui parte da culpa à falta de ações no futebol. “As pessoas responsáveis dentro dos clubes precisam receber mais educação e treinamento sobre como combater problemas, identificar postagens e fazer algo sobre isso. Falta consistência na estratégia nos clubes para lidar com isso.”

Sordell foi um dos que sentiram na pele essa falta de apoio. “As pessoas estavam me atacando e eu não era protegido pelo meu clube. Quando tentava pedir ajuda, eles não gostavam disso e sabiam do que estava acontecendo. O clube dizia para eu não me defender ou não falar determinada coisa”, diz o ex-jogador. “Alguns clubes ainda ficam em cima do muro, e isso é o mesmo que ser discriminatório.”

Se Sordell se diz aliviado com a aposentadoria precoce, alguns atletas em atividade se sentem frustrados. Nathan Ashmore, goleiro do Boreham Wood, clube da quinta divisão, afirma que sofreu discriminação ao longo de toda a carreira.

“Diziam algo sobre a cor da minha pele, ou me comparavam a outras pessoas negras, como a Serena Williams, ou que eu me parecia com uma banana, se estivesse jogando de amarelo. Acabei me acostumando. Sei que é triste admitir isso.”

Na semana passada, jogadores do Brentford, da segunda divisão, decidiram parar de se ajoelhar antes das partidas. O gesto, em solidariedade ao movimento Vidas Negras Importam, é comum no futebol inglês desde meados do ano passado. “Não acreditamos que isso está tendo impacto”, disse o time no comunicado.

Ashmore entende e apoia. “No início, era algo poderoso. Os meses passaram, os jogadores continuaram a sofrer abuso na internet, nada foi feito. Eu não me ajoelho mais”, diz o goleiro. “Acho que o gesto não tem mais motivo e estamos perdendo a mensagem.”

Já Bhandari ainda acredita que possa haver uma solução definitiva. Ele aguarda a resposta da carta enviada às empresas de tecnologia.

“Talvez eu seja um otimista, mas já passamos por isso na história da raça humana. Quando o rádio foi inventado, foi usado para fins nefastos nos anos 1930. Sempre quando surge uma nova mídia, há consequências que não são intencionais. As mídias sociais são a voz na era da internet, é a forma como as pessoas se comunicam. Mas já experimentamos desafios antes e superamos. Vamos superar esse também.”

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