Do segredo ao colapso, Superliga viveu curta história de egos e traições

Projeto de novo torneio europeu durou menos de 48 horas e opôs cartolas poderosos

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Tariq Panja Rory Smith
Londres | The New York Times

Por 48 horas, o futebol esteve à beira do abismo. Torcedores saíram às ruas. Jogadores se rebelaram abertamente. O caos circundava os corredores do poder do esporte, gerando uma onda de choque que ecoou pelo mundo inteiro, de Manchester a Manila, de Barcelona a Pequim, de Liverpool a Los Angeles.

Esse internacionalismo é o que fez do futebol europeu uma obsessão mundial, nos últimos 30 anos. Os clubes de elite da Europa Ocidental se abastecem de astros da África, América do Sul e de todo o restante do planeta. Atraem torcedores não só da Inglaterra, Itália e Espanha, mas da China, Índia e Austrália –em números grandes o bastante para despertar tentação em companhias de televisão do mundo inteiro, que se dispõem a pagar centenas de milhões de dólares pelos direitos de transmissão de seus jogos.

Mas embora o futebol tenha se tornado o maior negócio do esporte, continua a ser um assunto intensamente local. Equipes com raízes profundas em bairros e cidades pequenas competem em ligas nacionais que existem há mais de um século e disputam campeonatos nos quais os grandes e os talentosos dividem o campo –e ao menos parte das recompensas financeiras– com os pequenos e os provisórios.

Uma trégua perdurava há décadas entre as duas faces do esporte mais querido do planeta. Mas na noite de domingo ela foi rompida, quando uma aliança implausível de fundos de hedge americanos, oligarcas russos, magnatas industriais europeus e membros de famílias reais do Golfo Pérsico buscou tomar o controle das receitas do esporte mais popular do mundo, ao criar uma Superliga europeia fechada.

A maneira pela qual o plano veio a surgir e terminou desabando espetacularmente é uma história de egos e intrigas, avareza e ambição, reuniões secretas e almoços privativos, finanças internacionais e disputas internas. Tudo durou apenas dois dias, frenéticos e febris, mas foi um tempo mais que suficiente para abalar o mundo.

O segredo

Na quinta-feira da semana passada (15), Javier Tebas e Joan Laporta tinham marcado um almoço cordial e comemorativo. Poucos dias antes, Laporta havia sido eleito para sua segunda passagem pela presidência do Barcelona. Tebas, o executivo falastrão e escancaradamente belicoso que comanda a liga nacional espanhola, queria estar entre os primeiros a congratular o dirigente por sua vitória.

O almoço não transcorreu como era esperado. Laporta revelou a Tebas que o Barcelona quase certamente aderiria a uma dúzia dos outros clubes de futebol mais famosos e bem-sucedidos da Europa para criar uma competição separada, que para todos os efeitos distanciaria seus participantes das estruturas tradicionais do esporte, e, o mais importante, de sua estrutura econômica multibilionária.

A ameaça nada tinha de nova. Mas Tebas sentiu que o novo esforço parecia mais sério, mais real. Laporta lhe disse que meia dúzia de clubes já tinham aderido. Diversos outros haviam sido informados de que tinham prazo até o final da semana para tomar uma decisão.

Tebas acionou o alarme. Ligou para dirigentes de ligas de futebol em toda a Europa. Ligou para executivos de clubes poderosos. E entrou em contato com Aleksander Ceferin, presidente da Uefa, a organização que governa o futebol europeu e que, como sabia Tebas, teria mais a perder com o projeto.

Ceferin, 53, um advogado esbelto e franco nascido na Eslovênia, foi apanhado de surpresa. Poucas semanas antes, seu grande amigo e aliado Andrea Agnelli, presidente da Juventus, campeã da liga italiana, herdeiro de uma das maiores dinastias industriais da Europa e líder de uma associação que representa clubes de futebol europeus, lhe havia garantido que os boatos quanto a uma nova rodada de conversas sobre a criação de um torneio separado eram apenas “rumores”.

Apenas um dia antes, de fato, Agnelli e sua organização haviam confirmado seu compromisso para com um pacote de reformas na Champions League, a joia na coroa do futebol europeu e a maior fonte de receita no esporte. Tudo estava pronto para aprovação em uma reunião em Montreux, Suíça, na segunda-feira (19).

Ceferin –padrinho do filho mais novo de Agnelli– enviou uma mensagem de texto à mulher do magnata italiano e pediu que ela dissesse ao seu marido que ligasse urgentemente para ele. Ceferin havia iniciado sua rodada de contatos havia três horas quando o celular tocou. E Agnelli, em tom despreocupado, voltou a reassegurar o dirigente de que tudo estava bem.

Horas se passaram. Os dois voltaram a conversar ao telefone. Por fim, o italiano disse a Ceferin que precisava de mais 30 minutos.

E em seguida Agnelli desligou seu telefone.

O presidente da Juventus, Andrea Agnelli, durante jogo da equipe italiana
O presidente da Juventus, Andrea Agnelli, durante jogo da equipe italiana - Massimo Pinca - 21.abr.21/Reuters

A revolta

O motivo para que a ameaça de uma Superliga venha sendo considerada tão ameaçadora há tanto tempo é que boa parte da vasta economia do futebol repousa sobre um elo frágil.

Tanto os campeonatos nacionais –a Premier League, na Inglaterra, e La Liga, na Espanha– quanto torneios continentais como a Champions League dependem, em alguma medida, da presença dos clubes de elite para atrair torcedores e, com eles, organizações de mídia e patrocinadores. Sem isso, as fontes de receita que se estendem aos times menores poderiam secar.

O sistema depende há décadas de apaziguar os clubes ricos em grau suficiente para encorajá-los a manter sua lealdade à coletividade. Mas repentinamente esse elo começou a se desfazer.

Ceferin e seu círculo mais estreito de colaboradores começaram a trabalhar. Transmitiram a notícia a alguns membros do conselho da Associação Europeia de Clubes, organização que congrega 250 clubes do continente. Agnelli e dirigentes importantes como Ed Woodward, do Manchester United, haviam iludido o conselho ao afirmar que apoiavam o plano de reforma da Champions League.

Eles disseram aos clubes que, mesmo que as equipes separatistas pretendessem continuar jogando seus campeonatos nacionais, o plano levaria a um colapso no valor dos direitos de transmissão de todos esses torneios. Os patrocínios desapareceriam. As finanças do futebol seriam dizimadas. “Eles ficaram indignados. Mal podiam acreditar”, disse Ceferin em uma entrevista na quarta-feira (21). “Até mesmo as organizações mafiosas respeitam algum código."

Pela hora do almoço, no domingo (18), o elenco de insurgentes era conhecido. Ceferin começou a se referir a eles como “os 12 sujos”. Além do Barcelona, Real Madrid e Atlético de Madrid haviam aderido, na Espanha. Da Inglaterra vinham seis dos integrantes: Manchester United, Manchester City, Liverpool, Chelsea, Arsenal e Tottenham. Na Itália, a Juventus havia conseguido a adesão do Milan e da Inter de Milão.

O presidente da Uefa, Aleksander Ceferin
O presidente da Uefa, Aleksander Ceferin - Richard Juilliart - 19.abr.21/AFP

Antes que os clubes pudessem anunciar seus planos, a notícia vazou. Os protestos públicos, especialmente no Reino Unido, foram imediatos. Torcedores penduraram faixas diante dos estádios de seus clubes, e legisladores deram declarações à mídia denunciando os rebelados por sua cobiça e desrespeito às tradições do futebol.

Aconteceu precisamente o que alguns dos envolvidos no projeto temiam. Havia dúvidas de que o momento fosse propício para anunciar o plano. Pessoas informadas se preocupavam com a possibilidade de que ele não sobrevivesse a uma reação inicial feroz. “Não é a hora para fazê-lo”, alertou um executivo envolvido no projeto. Ele sugeriu esperar até a metade do ano.

As preocupações expressadas não foram levadas em conta. Agnelli, teoricamente porta-voz de todos os clubes europeus, em sua função de presidente da associação, e além disso amigo íntimo de Ceferin, sentia o desgaste por seu papel de agente duplo. Ele havia protegido o segredo dos clubes rebelados durante semanas, camuflando a verdade –para dizer o mínimo– em suas conversas com amigos e aliados.

Agnelli sabia que a nova liga aconteceria. Com as assinaturas do Chelsea, Manchester City e Atlético de Madrid, os membros fundadores estavam definidos. O financiamento, organizado pela Key Capital Partners, uma companhia espanhola, e pelo banco americano JPMorgan Chase, significaria bilhões de dólares em novas riquezas. Agnelli precisava veicular a notícia.

Guerra nada civil

Ao amanhecer do dia seguinte, as linhas de combate estavam definidas. E ficou imediatamente claro que os 12 clubes rebelados contavam com apoio praticamente zero.

Ceferin, com uma expressão severa no rosto, criticou pesadamente o grupo separatista, em seus comentários iniciais para repórteres. Ele foi especialmente cáustico com relação a Woodward, do Manchester United, que ele sentiu tê-lo enganado, e com relação a Agnelli. Ceferin os definiu como “cobras” e “mentirosos” e descreveu de que maneira os dois o haviam levado a acreditar que apoiavam plenamente as reformas na Champions League.

Àquela altura, a acrimônia já tinha se espalhado pela paisagem do futebol europeu. A Premier League realizou uma reunião sem a presença dos seis clubes rebelados, e os outros 14 clubes discutiram que medidas punitivas poderiam ser tomadas contra aqueles que decidiram aderir à Superliga.

Os clubes ingleses, especialmente o Liverpool e o Chelsea, tinham outros motivos de preocupação. Suas torcidas já estavam se reunindo diante dos estádios de ambos, que estão fechados por conta da pandemia, e penduravam faixas de protesto contra a Superliga nos muros e portões.

Os jogadores também estavam começando a expressar suas opiniões. O elenco do Manchester United exigiu uma reunião com Woodward para expressar não apenas sua fúria por só ter descoberto o plano via imprensa como sua desaprovação à ideia em si. Diversos outros astros do esporte, que jogam por times que não estavam envolvidos na rebelião, postaram mensagens na mídia social desaprovando o plano.

O colapso

Enquanto Ceferin se preparava para seu discurso na reunião de Montreux, terça-feira de manhã, começaram a surgir reportagens de que diversos dos clubes –entre os quais Chelsea e Manchester City– estavam pensando em abandonar o projeto. As redes de TV e os patrocinadores se posicionaram contra a ideia, e o governo britânico estava ameaçando medidas oficiais para bloqueá-lo.

Em seu discurso, Ceferin falou de cobiça e egoísmo, mas também da importância do futebol no tecido da cultura europeia e nas vidas de milhões de pessoas que acompanham o esporte no continente. Ele em seguida fez um apelo direto aos clubes ingleses.

“Cavalheiros, vocês cometeram um erro imenso”, ele lhes disse, encarando a câmera diretamente. “Haverá quem diga que foi por cobiça, desdém, arrogância, capricho ou completa ignorância da cultura do futebol na Inglaterra. Isso não importa."

“O que importa é que ainda há tempo para mudar de ideia. Todo mundo erra."

Em poucas horas, o projeto começou a desabar em ritmo de avalanche. Mais e mais jogadores se posicionaram contra a ideia. Marcus Rashford, atacante que surgiu nas categorias de base do Manchester United, postou uma imagem no Twitter acompanhada pela legenda “o futebol não existe sem os torcedores”. O elenco inteiro do Liverpool divulgou uma mensagem simultânea reprovando o projeto.

A noite estava chegando, e centenas de torcedores se reuniram diante do estádio de Stamford Bridge, do Chelsea, para protestar contra o plano antes do jogo do time contra o Brighton. Dentro do estádio, dirigentes do clube vazaram a notícia de que o Chelsea estava estudando maneiras de romper seu contrato com a Superliga.

A nova liga, depois de perder metade de seus integrantes e toda a sua presença na Inglaterra, estava acabada. A Inter de Milão anunciou sua saída horas mais tarde, e em seguida, pouco menos de 48 horas depois do anúncio inicial do plano, a Superliga divulgou uma declaração sem assinatura admitindo que o plano já não era viável.

Àquela altura, Ceferin estava de volta à Eslovênia, depois de uma viagem de oito horas de Montreux para lá. Ele ficou acordado até as 2h digerindo as notícias. Divulgou um comunicado acolhendo o retorno dos clubes ingleses. Começou a responder aos milhares de mensagens que sobrecarregaram seu telefone nos dois dias anteriores.

Em seguida, fechou seu laptop e se serviu uma dose dupla de uísque.

Tradução de Paulo Migliacci

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