Inspetor-geral diz que FBI falhou no caso de ex-médico que abusou de ginastas

Lawrence Nassar foi condenado em 2018 pelo abuso de dezenas de atletas

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Juliet Macur Michael Levenson

O inspetor-geral do Departamento da Justiça dos Estados Unidos divulgou na quarta-feira (14) um relatório aguardado há muito tempo, que critica severamente a condução pelo FBI (a polícia federal dos EUA) do caso envolvendo Lawrence Nassar. O ex-médico da seleção americana de ginástica foi condenado em 2018 à prisão por abusar sexualmente de atletas que ficaram a seus cuidados.

Nassar foi acusado de abusos contra centenas de pacientes – entre as quais a campeã olímpica Simone Biles e a maioria das integrantes da equipe feminina de ginástica dos Estados Unidos nas duas últimas Olimpíadas, sob o pretexto de estar lhes ministrando tratamentos médicos.

O relatório, que cita documentos judiciais, afirma que 70 ou mais jovens atletas sofreram abusos sexuais praticados por Nassar entre julho de 2015, quando a federação americana do esporte encaminhou ao FBI as acusações contra o médico, e agosto de 2016, quando a polícia interna da Universidade de Michigan recebeu uma queixa separada.

Homem de óculos em uma corte de justiça
O médico Lawrence Nassar na corte durante seu julgamento por abuso sexual de dezenas de ginastas, incluindo integrantes da equipe olímpica dos EUA - Rena Laverty-21.nov.2018/AFP

John Manly, advogado de muitas das vítimas, disse que é provável que o número seja ainda mais alto – cerca de 120 pacientes, entre as quais uma menina de apenas oito anos.

“Trata-se de uma falha devastadora do FBI e do Departamento da Justiça que múltiplos agentes federais tenham acobertado os abusos e o molestamento de crianças por Nassar”, disse Manly. “As autoridades ficaram devendo, a essas meninas, essas famílias. Ninguém parecia dar a mínima para elas”.

O relatório do inspetor-geral afirma que agentes importantes do FBI no escritório de campo de Indianápolis, que recebeu as denúncias, não responderam às acusações “com a seriedade e urgência que elas mereciam e requeriam”. A investigação não foi adiante até que uma reportagem do jornal The Indianapolis Star, em setembro de 2016, detalhasse os abusos cometidos por Nassar.

Funcionários do FBI também cometeram “numerosos erros, e erros fundamentais, ao não responder” às acusações e não notificar as autoridades estaduais ou locais sobre elas, ou tomar outras medidas para lidar com a ameaça continuada que Nassar representava, aponta o relatório.

De acordo com o documento, o agente especial encarregado do escritório de campo de Indianápolis, W. Jay Abbott, mentiu ao gabinete do inspetor-geral numerosas vezes quando questionado sobre o inquérito do caso.

Abbott deu declarações falsas “para minimizar erros cometidos pelo escritório de campo de Indianápolis em conexão com a condução do caso contra Nassar”, o relatório afirma.

O documento também afirma que Abbott violou as regras do FBI ao conversar com Steve Penny, então presidente da USA Gymnastics, sobre potenciais oportunidades de emprego no Comitê Olímpico dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que eles discutiam as queixas sobre Nassar.

Abbott mais tarde se candidatou a um emprego no comitê, e mentiu duas vezes ao inspetor-geral sobre tê-lo feito.

Em setembro de 2020, o Departamento da Justiça se recusou a processar Abbott, que se aposentou em janeiro de 2018, e um agente especial não identificado que ocupava um cargo de supervisão em Indianápolis, de acordo com o relatório.

Abbott leu o relatório, de acordo com seu advogado, Josh Minkler. “Abbott agradece os policiais e procuradores públicos que levaram Larry Nassar à Justiça”, afirmou Minkler em comunicado. “A esperança dele é a de que as corajosas vítimas dos horríveis crimes de Abbott encontrem a paz”.

Para Rachael Denhollander, advogada e ex-ginasta que foi a primeira pessoa a acusar Nassar publicamente de agressão sexual, os detalhes do relatório revelam “um nível incrivelmente profundo de traição”, o que para ela não foi surpresa.

“Quando saí a público com minhas acusações, minha expectativa era a de que falhas nas investigações e acobertamentos fossem revelados em múltiplos níveis, porque é isso que as sobreviventes estão enfrentando”, ela disse, acrescentando que presumia que Nassar havia abusado de outras mulheres porque já vinha trabalhando com a equipe nacional há quatro anos antes de seus abusos contra ela, e Denhollander disse saber como os abusadores operam.

“É isso que as sobreviventes têm de enfrentar”, ela disse. “E as pessoas lhes perguntam constantemente por que elas não denunciaram o problema. É esse o motivo”.

Algumas semanas atrás, em 14 de maio, o Departamento da Justiça notificou o inspetor-geral de que não iniciaria uma nova investigação sobre as possíveis declarações falsas do agente supervisor, em suas entrevistas com a equipe da inspetoria geral.

O FBI disse que o agente não tinha mais funções de supervisão e não estava trabalhando em assuntos do FBI. A organização disse que o desempenho do agente seria avaliado pelo Escritório de Responsabilidade Profissional da agência.

O senador Richard Blumenthal, democrata do Connecticut, que trabalhou com o senador republicano Jerry Moran, do Kansas, em uma investigação do Senado sobre o escândalo Nassar, classificou o relatório como "absolutamente preocupante", e “um soco no estômago daqueles que se importam com forças policiais efetivas”.

Ele sugeriu que o Senado conduza audiências para responsabilizar o FBI, e disse que queria saber por que os agentes do FBI não haviam sido acusados criminalmente por fazer declarações falsas.

Moran disse que desejava explorar, em parte, os motivos para o que o Departamento da Justiça tenha decidido não processar pessoa alguma no FBI.

O relatório é mais um golpe pesado para a reputação do FBI. Em 2019, o inspetor-geral criticou severamente a agência por seus muitos erros e omissões em uma série de pedidos de mandados de escuta usados para a investigação do FBI sobre a Rússia.

Como parte daquela investigação, um ex-advogado do FBI se admitiu culpado de alterar um documento que fazia parte da documentação do inquérito sobre o país asiático.

O FBI declarou em comunicado ter promovido mudanças para que acusações de abuso semelhantes sejam disseminadas prontamente dentro da organização e informadas a outras agências policiais.

“Isso não deveria ter acontecido”, o FBI afirmou. “O FBI jamais perderá de vista os danos que o abuso de Nassar causou. As ações e inações de certos empregados do FBI descritas no relatório são indesculpáveis e um descrédito para a organização”.

Manly disse que o relatório propiciaria algum alívio às ginastas por descobrirem o que aconteceu no caso. Mas ele disse que as famílias delas queriam que os responsáveis fossem punidos, e o relatório não cuidou disso.

“Todas aquelas famílias precisam viver com as consequências, enquanto Jay Abbott e seus asseclas podem viver sossegados o resto de suas vidas, recebendo suas aposentadorias do FBI”, ele disse.

Mesmo quando a condução do caso pelo FBI começou a ser esquadrinhada pelo Congresso, pela mídia e pelo comando da agência, em 2017 e 2018, os dirigentes do escritório de Indianápolis não assumiram a responsabilidade por suas falhas, o relatório apontou.

Em vez disso, ofereceram informações “incompletas e imprecisas” em resposta às perguntas da mídia e à investigação interna da agência, o documento afirma.

Com muito atraso, o FBI e as autoridades locais terminaram por constatar que Nassar havia agredido sexualmente mais de 100 mulheres, e que ele detinha material de pornografia infantil, o que resultou em condenações contra ele em tribunais federais e estaduais, segundo o relatório.

Mais de 200 vítimas estão processando a USA Gymnastics, afirmando que Nassar abusou sexualmente delas, mas os processos foram suspensos quando a federação pediu concordata em dezembro de 2018, abalada pelo escândalo.

No começo daquele ano, o escândalo de abuso sexual de Nassar abalou o esporte e mais de 150 mulheres e meninas depuseram na audiência inicial de sentenciamento dele em um tribunal de Michigan.

Elas confrontaram Nassar e descreveram os danos que o abuso lhes causou. Muitas choravam ao depor.

Em 2020, a organização se ofereceu para pagar US$ 215 milhões para encerrar os processos abertos pelas atletas que sofreram abusos por Nassar. A oferta surgiu depois que mais de 300 ginastas, entre as quais integrantes da equipe olímpica americana, processaram a federação por não tê-las protegido contra Nassar.

Em 2019, um relatório do Senado americano constatou que dirigentes do Comitê Olímpico e Paralímpico Americano, da USA Gymnastics, da Universidade Estadual do Michigan e do FBI tinham provas dos delitos de conduta sexual de Nassar havia mais de um ano e decidiram não agir —o que permitiu que ele praticasse novos abusos contra outras dezenas de meninas.

Tradução de Paulo Migliacci

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