Entre os 20 competidores da segunda qualificatória para os 5.000 m das Olimpíadas, o sudanês Jamal Abdelmaji Eisa Mohammed era o mais baixo, com 1,70 m. Precisava dar mais passadas para acompanhar o pelotão de elite, o que não conseguiu em grande parte da prova. Manteve o seu ritmo, sem se desesperar nem sair de seu plano de corrida. Terminou em 13º. O tempo de 13m42s98 foi o melhor da sua carreira.
Se em maio de 2010, quando dormia no banco de um parque de Tel Aviv, em Israel, alguém lhe dissesse que 11 anos depois participaria das Olimpíadas... “Eu falaria que essa pessoa havia perdido o juízo. Minha preocupação era ter o que comer, não correr”, afirma o atleta de 27 anos à Folha.
Depois que o pai foi morto em 2003, quando Jamal tinha 10 anos, em um ataque em Barde, um vilarejo do Sudão, o garoto decidiu fugir do seu país natal. Imagina que talvez por ser criança demais não tenha tido êxito. Não se lembra quantas vezes tentou. “Foram muitas.”
Em 2010, conseguiu chegar a Israel. No centro de detenção para imigrantes ganhou um bilhete de ônibus —apenas de ida— para Tel Aviv. “Não conhecia ninguém lá. Fiquei perdido. Comecei a procurar outros sudaneses.” Um deles o ajudou e lhe ofereceu vaga num apartamento em que moravam outros seis compatriotas que chamavam o local de casa. Jamal ri da lembrança. Era um quarto com uma cama.
“Naquele tempo eu nem conseguia pensar em atletismo. A preocupação era procurar emprego. Foi uma caminhada até chegar a esta noite aqui”, diz o sudanês, apontando para o corredor que leva à pista do Estádio Olímpico de Tóquio, onde havia acabado de correr os melhores 5 km de sua vida na manhã de terça-feira (3). Não por acaso, após cruzar a linha de chegada, estava exultante. Cumprimentou todos os competidores, independentemente de eles terem ficado à sua frente ou atrás na classificação.
Isso foi depois. Antes da prova, não quis nem olhar para os outros atletas. Não desejava se sentir intimidado com o tamanho deles, com as pernas mais longas ou com as camisas com nomes de países, alguns para os quais tentou imigrar e não conseguiu. Jamal corre com o uniforme do time de refugiados.
“Estar entre os melhores do mundo é um sonho. Foi o melhor sentimento que tive na vida. Fiquei mais feliz do que quando consegui arrumar emprego em Tel Aviv”, disse. O trabalho em Israel foi como pintor de paredes, emprego no qual ficou por sete anos. Quando saiu, foi para se dedicar ao atletismo de vez.
Um amigo havia sugerido que tentasse o esporte porque, no futebol, que ele jogava aos finais de semana, era quem mais corria em campo. Sua estrutura física lembra a de N’Golo Kanté, o volante francês de pais malianos, campeão da Copa do Mundo de 2018 e conhecido por ser incansável.
Jamal gostou da ideia de competir em corridas de longa distância. Mas a prioridade era pintar, o que lhe possibilitava se manter em Israel e mandar dinheiro para a família no Sudão. Levou tempo, mas o quarto para sete pessoas ficou no passado. “Aos poucos, conseguimos algum dinheiro e alugamos um espaço maior. Hoje não tenho minha própria casa, mas vivo bem melhor. Foi o resultado de muito trabalho.”
Hoje, mora no apartamento de um voluntário do Alleys Runners Club, iniciativa na qual trabalha como massagista. Não paga nada, apenas cuida do lugar onde tem o seu próprio quarto e não se reveza com mais ninguém para se deitar em uma cama.
Para quem ainda tem as imagens da guerra civil do Sudão, a morte do pai e as várias tentativas de fuga na memória, Jamal usa a palavra “liberdade” para definir como se sentiu na prova dos 5.000 m em Tóquio.
“Não acabou. Tenho de trabalhar mais duro agora. Tudo o que aconteceu aqui é um incentivo para mostrar que posso mais”, afirma. Desde 2017, ele é bolsista olímpico em um programa do COI (Comitê Olímpico Internacional) que lhe dá condições de treinar em alto nível no atletismo.
No horizonte estão provas de cross country, feitas em espaços abertos, em terra ou grama. É uma maneira de continuar competindo e, quem sabe, tentar de novo nos Jogos de Paris-2024. “Isso aqui [as Olimpíadas] é mais do que sonhei. Nunca vou esquecer que vivi isso”, diz Jamal Abdelmaji Eisa Mohammed.
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