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Cristiano Barreira

Os Jogos de Tóquio e os esportes de combate, um oxímoro fascinante

O Japão de hoje é bem menos desigual que o Brasil, onde a lógica social da violência é ameaça real

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Cristiano Barreira

Professor Associado da USP, é diretor da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto e membro da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte; integra o Grupo de Estudos Olímpicos

Oxímoro é uma figura de linguagem que reúne sentidos contraditórios. Ao fazê-lo, a expressão acentua aquilo que se queira destacar, mas não sem deixar o rastro ambivalente de seu paradoxo. Ademais, dizer que algo é de um “belo horroroso” só não anula a adjetivação pretendida quando o contexto em que se diz é tomado em consideração.

De todas as modalidades esportivas, talvez nenhuma se invista tão bem dessa figura de linguagem como as modalidades de combate. Para o bem e para o mal, o que faz o seu fascínio mora em sua capacidade de reunir sentidos tão opostos como “virtude virulenta” ou “virulência virtuosa”.

Como todo bom emprego do oxímoro, o contexto dirá o que se quer dizer. Entretanto, evocando a contradição, a sombra de sua ambivalência pode ser tão forte que há quem desdiga o próprio contexto habitado pelo oxímoro das lutas.

Assim, de tempos em tempos, os esportes de combate são golpeados, de lado a lado, por acusações que veem neles apenas um dos termos de nossa figura de linguagem, a virulência, ou a virtude. Os Jogos Olímpicos de Tóquio têm sido ocasião para essas acusações voltarem a carga.

Há os que veem nas lutas a expressão da barbaridade e da agressão mais contrárias aos ideais educativos e às virtudes olímpicas, não merecendo, portanto, terem o status de modalidades esportivas. Ficaria subentendido, afinal, que a disputa esportiva não poderia se dirigir ao oponente agredindo-o, tomando o adversário como um inimigo a ser lesado.

Menos conhecida do público em geral, há acusações que enxergam no ato de tornar olímpicas lutas tradicionais, como o judô e o caratê, nativas do país sede desses Jogos, uma franca degradação do budô. Enquanto arte marcial —tradução usual de budô, caminho do guerreiro— estas práticas seriam forjadas na imagem de combates letais, correntes no opressivo regime militar do Japão feudal.

Ao ser tornada esporte, a arte marcial sofreria uma indevida distorção existencial. Está subentendido que, na busca pela pontuação, perder-se-ia a honra do espírito de luta, atitude que só se emprega quando o face a face do combate é assumido como sendo potencialmente fatal.

Embora opostos, estes golpes lançados contra as lutas adotam um expediente comum. Ao idealizarem os pontos culminantes dos horizontes a que se apegam, o da disputa esportiva e o do duelo combativo, ambos os ataques só são possíveis por negligenciarem o solo das experiências que sustentam ao brilho os seus mais altos picos.

Na prática, todavia, a educação e a ética esportiva só são possíveis porque os atletas são friccionados, tensionados e ameaçados de protagonizarem ou serem alvos da falta de correção com a regra e com o justo, do rebaixamento, da ignomínia, do conformismo ou do inconformismo, do descontrole, da frivolidade, da desmesura e, no limite, da violência.

Ao se exporem a isso, os atletas refundam na experiência carnal os valores esportivos, resgatando-os dos céus presunçosos, unilaterais e protegidos pela distância da idealização abstrata. Aqui, é preciso dizer que nenhuma modalidade se aproxima e se assemelha tanto da violência como aquelas de combate. Nelas, aparentemente, não se deu por completo o processo de simbolização das habilidades guerreiras praticadas nas disputas olímpicas da Antiguidade, atualizadas e reeditadas nos Jogos modernos pelo lema citius, altius, fortius. Ledo engano, posto que lutar, bem diferentemente de guerrear contra inimigos, põe em ação, entre os oponentes, uma recíproca entrega de si, por meio da qual há o desenvolvimento e o teste isonômico de habilidades do combate corpo a corpo.

Curiosamente, parte importante das habilidades do mais purista praticante do budô só pode se desenvolver, efetivamente, se colocada a teste e a prova, não de duelos mortais, mas da rotina de lutas reguladas para que um não mate o outro e, sim, se aperfeiçoe com ele. Aliás, os esportes de combate resultaram precisamente dessa codificação. A idealização do duelo fatal, todavia, impede muitos praticantes de sequer se exporem à luta, preferindo permanecer no não menos exigente território do combate imaginário, no caso do caratê, o kata, também disputado em Tóquio.

Finalmente, é preciso dizer que, longe de visarem recair na brutalidade descontrolada, as lutas lidam com esse risco desenvolvendo outras possibilidades relacionais, técnicas, morais, emocionais e espirituais, toda uma educação física e uma psicologia que nos humanizam exatamente no confronto real ou potencial com aquilo que invoca nossa desumanização, a violência. O Japão de hoje é bem menos desigual e opressivo que o Brasil, onde a lógica social da violência é ameaça real para muitos, trazendo um quinhão diário de intimidação desumanizante que esfacela qualquer abstração idealista.

Trazidos para o chão da vida, os esportes de combate no Brasil ilustram, na prática, uma antropofagia que já levou a nos apelidarem de país da luta. Em incontáveis projetos sociais de inúmeras modalidades, como o boxe, artes de combate fomentam experiências de lida e inventividade existencial que resistem a ser tragadas pela virulência e dignificam a vida de seus praticantes. Haja psicologia social para entender e lidar com os esportes de combate. A boa notícia é que essa psicologia dos esportes de combate e das artes marciais vem sendo feita.

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