Federação dos EUA fecha acordo, e seleções masculina e feminina terão remuneração igual

Homens, que abocanhavam a maior parte dos pagamentos da Fifa, dividirão bolo com mulheres

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Andrew Das
The New York Times

Pela primeira vez, os atletas que defendem as seleções masculina e feminina de futebol dos Estados Unidos receberão pagamentos e prêmios iguais, inclusive em Copas do Mundo, nos termos de um acordo histórico assinado com a US Soccer (Federação de Futebol dos Estados Unidos), que vai pôr fim em anos de litígios e de disputas públicas amargas sobre o que constitui "remuneração igual".

As estruturas de remuneração revisadas são parte de contratos coletivos de trabalho com as duas seleções anunciados na quarta-feira (18), três meses depois que um grupo de importantes jogadoras de futebol americanas aceitou um acordo para encerrar um processo por discriminação contra a US Soccer e seis meses antes que a seleção masculina entre em campo para sua participação no Mundial do Qatar.

Além de garantir pagamentos iguais aos homens e mulheres que participam de partidas internacionais, os acordos incluem uma cláusula, ao que se sabe inédita, sob a qual as seleções vão combinar os pagamentos desiguais que recebem da Fifa, a organização que comanda o futebol mundial, por participação em Copas do Mundo.

A partir da Copa do Mundo masculina de 2022 e da Copa do Mundo feminina de 2023, o dinheiro será dividido igualmente entre os integrantes das duas seleções.

Seleção feminina dos EUA comemora a conquista da Copa do Mundo, em 2019
Seleção feminina dos EUA comemora a conquista da Copa do Mundo, em 2019 - Philippe Desmazes - 7.jul.19/AFP

"Nenhum outro país fez isso", disse Cindy Parlow Cone, a presidente da US Soccer, sobre o acordo para equiparar os pagamentos recebidos pelas Copas do Mundo. "Acho que todos deveriam se orgulhar muito do que realizamos com esse acordo. É realmente, verdadeiramente, histórico."

A divisão do dinheiro dos prêmios é uma concessão notável da parte da seleção masculina, que anteriormente abocanhava a maior parte dos pagamentos multimilionários que a US Soccer recebe da Fifa quando a equipe joga uma Copa do Mundo.

O acordo quanto a dividir o dinheiro igualmente com a seleção feminina também removeu o que as jogadoras e a federação viam como maior obstáculo à solução do debate sobre a remuneração igual. Isso pode representar um imenso benefício para a seleção feminina, cujos pagamentos da Fifa por jogar Mundiais equivalem a uma fração dos masculinos.

Sob os novos acordos, que expiram em 2028 e cobrem as quatro próximas Copas do Mundo, dezenas dos melhores futebolistas americanos, homens e mulheres, foram informados, em apresentações internas às quais a reportagem teve acesso, de que podem esperar pagamentos anuais médios de US$ 450 mil (R$ 2,2 milhões) de parte da US Soccer —​e potencialmente mais que o dobro desse total em anos de Copa do Mundo em que conquistem sucessos.

"Sinto muito orgulho porque haverá meninas que vão poder crescer e ver o que realizamos, e ver seu valor reconhecido, em vez de ter de batalhar por isso", disse Midge Purce, integrante do comitê de negociação coletiva da associação das jogadoras de futebol.

"Mas meu pai sempre me disse que ninguém ganha recompensa por fazer sua obrigação", ela acrescentou. "E pagar igualmente os homens e mulheres é uma obrigação."

A diferença na remuneração dos homens e mulheres vem sendo uma das questões mais contenciosas do futebol nos últimos anos, especialmente depois que a seleção feminina dos Estados Unidos venceu duas Copas do Mundo consecutivas, em 2015 e 2019, e a seleção masculina não conseguiu classificação para a Copa do Mundo de 2018. Ao longo dos anos, a seleção feminina, que inclui algumas das atletas mais reconhecíveis do planeta, amplificou e estendeu sua luta por meio de processos judiciais, entrevistas e pronunciamentos nos maiores palcos do esporte.

A disputa sempre foi uma questão complexa, com diferenças nos contratos, no dinheiro pago pela Fifa e outras complicações financeiras ajudando a encobrir as disparidades de remuneração entre homens e mulheres e complicando a situação das federações nacionais, como a US Soccer, em seus esforços para resolver as diferenças.

Mas a federação por fim assumiu o compromisso de adotar um sistema mais equitativo. Para chegar a isso, a US Soccer distribuirá milhões de dólares adicionais aos melhores jogadores do país por meio de um complicado cálculo que envolve cachês maiores por partida jogada, premiações compartilhadas e novos acordos de divisão de receita que darão a cada seleção sua fatia das dezenas de milhões de dólares que a federação recebe a cada ano de patrocinadores, redes de televisão e outros parceiros.

Fazer as pazes com as atletas será caro. A US Soccer assumiu o compromisso de pagar US$ 18 mil (R$ 89,4 mil) por jogo a cada atleta, e o pagamento pode chegar a US$ 24 mil (R$ 119,2 mil) em caso de vitórias em torneios importantes —​cimentando o status das seleções feminina e masculina dos Estados Unidos como duas das equipes de futebol mais bem pagas do planeta. E a federação vai entregar até 90% do dinheiro que recebe da Fifa por participar das Copas do Mundo aos integrantes das seleções masculina e feminina que jogarem esses torneios. Com base no desempenho passado, isso pode resultar em um pool de prêmios compartilhado de mais de US$ 20 milhões (R$ 99,3 milhões), a partir do ano que vem.

Mas, a despeito do custo, a nova norma de pagamento igual terá valor incalculável para todos os envolvidos, e dará fim a seis anos de disputa que abalaram a reputação da US Soccer, colocaram em risco seu relacionamento com importantes patrocinadores e resultaram em gastos de milhões de dólares com advogados, dos dois lados da contenda.

Enquanto esses lados batalhavam nos tribunais e em sessões de negociação, a disputa também produziu trocas de farpas ocasionalmente cáusticas sobre privacidade pessoal, igualdade no local de trabalho e justiça básica. E atraiu apoio (e palpites) de um coral disparatado de candidatos à presidência, astros do esporte e celebridades de Hollywood –nem todos defensores da campanha das mulheres por remuneração igual.

Resolver a disputa amigavelmente, não no tribunal, pode tornar mais fácil para a federação atrair novos patrocinadores, e reconstruir seus elos com suas jogadoras mais importantes. Ao oferecer às seleções uma fatia de sua receita comercial, a US Soccer essencialmente está proporcionando um incentivo às suas maiores estrelas para que ajam como suas parceiras na busca de novas maneiras de elevar essas receitas.

"Não há como negar que o dinheiro que teremos de pagar às nossas seleções nacionais é dinheiro que deixaremos de investir no esporte", disse Cone, quando questionada sobre os efeitos dos novos contratos sobre a missão mais ampla da federação. "As pessoas podem encarar a situação dessa perspectiva. Mas, da maneira de que vejo, nosso trabalho é tentar descobrir como esses três grupos podem trabalhar juntos a fim de fazer crescer o bolo e beneficiar a todos."

Cone e representantes das duas seleções afirmaram que os acordos ofereciam um modelo para aqueles que desejam reestruturar o setor de esportes, que movimenta bilhões de dólares e no qual vantagens geracionais significam que o dinheiro, o destaque e as oportunidades continuam a fluir desproporcionalmente na direção dos esportes e esportistas masculinos.

"Esses acordos mudaram o jogo para sempre nos Estados Unidos", disse Cone. "E têm o potencial de mudar o jogo no mundo inteiro."

Mas, embora a resolução da disputa sobre pagamentos tenha valor simbólico e financeiro imenso nos Estados Unidos, não está claro se os novos acordos representam um modelo que poderá ser seguido em outros lugares do planeta.

Desde que as mulheres da seleção americana de futebol começaram a pressionar por pagamento igual, em 2016, federações de futebol como as da Noruega, da Austrália e da Holanda agiram para tornar mais parelha a remuneração de suas seleções nacionais. Mas todos esses acordos buscavam igualar as quantias pagas por partida, em todos os casos muito inferiores às que a US Soccer paga às suas seleções principais. E todos eles deixaram de lado a principal disparidade de remuneração do futebol: a imensa diferença nos valores pagos às seleções masculinas e femininas pela Fifa em suas respectivas Copas do Mundo.

As 24 seleções que participaram da Copa do Mundo de 2019, na França, por exemplo, dividiram uma premiação de US$ 30 milhões (R$ 149 milhões, na cotação atual); já as 32 seleções masculinas que disputarão a Copa do Mundo do Qatar, em novembro, dividirão US$ 450 milhões (R$ 2,24 bilhões).

Um acordo negociado se tornou o único caminho para a igualdade de pagamento em 2020, depois que um tribunal federal americano recusou as principais queixas de um grupo das principais jogadoras da seleção feminina, que estavam processando a federação por discriminação de gênero. Cone, que no passado foi integrante da seleção feminina e se tornou presidente voluntária da US Soccer recentemente, recebeu a decisão judicial com esforços de reaproximação, na época, buscando negociações renovadas para um acordo. Mas ela aumentou a pressão sobre os jogadores da seleção masculina para que eles ajudassem a reduzir a disparidade, no final do ano passado, quando disse que a US Soccer não aceitaria contratos novos com qualquer das seleções que não equalizassem os prêmios recebidos da Fifa pela Copa do Mundo.

Walker Zimmerman, zagueiro da seleção masculina americana e um dos líderes do sindicato dos atletas, disse que ele e seus colegas de equipe tinham àquela altura chegado à conclusão de que "não há outra maneira de fazer isso". Persuadir seus colegas de equipe a ratificar os acordos "nem sempre transcorreu com suavidade", ele admitiu.

"Tentar expressar aquilo que você acredita deveria acontecer, aquilo que é possível e aquilo que é certo... Essas conversações são difíceis", disse Zimmerman. "Mas no final tivemos um grupo de jogadores, tanto na seleção masculina quanto na feminina, que se uniram e resolveram o assunto."

A despeito do espírito de concórdia da quarta-feira, a remuneração das seleções masculina e feminina ainda não será inteiramente igual: lesões, decisões de treinadores e até mesmo o número de partidas disputadas por cada time continuarão a afetar a quantia que cada jogador receberá. Mas, pela primeira vez, tanto as seleções quanto a federação poderão concordar em que pelo menos a escala de pagamento será a mesma.

"Continuamos a ter dois contratos separados", disse Cone. "Mas, em termos econômicos, as coisas são exatamente iguais."

Para as mais conhecidas jogadoras da seleção americana de futebol, o acordo pode representar uma recompensa imediata ao liberar o acesso a US$ 24 milhões (R$ 119,2 milhões) reservados pelo acordo a que elas chegaram com a US Soccer em fevereiro, uma quantia em grande parte referentes a pagamentos postergados. (O acordo foi negociado para que elas retirassem um processo de discriminação contra a federação.) A US Soccer condicionou o pagamento da quantia à assinatura de novos contratos coletivos de trabalho, que formalizassem a igualdade de pagamento entre as duas seleções.

Com os novos acordos aprovados, a US Soccer agora pode solicitar a aprovação do juiz encarregado do processo original para começar a emitir cheques.

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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