Guerra Fria chegou ao xadrez com confronto do século entre Fischer x Spassky há 50 anos

Há 50 anos, final do Mundial reuniu americano e soviético no 'confronto do século'

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São Paulo

Nenhum país se adaptou tão bem ao xadrez quanto a Rússia e nenhuma potência se dedicou tanto a ele quanto a União Soviética, mas, quando a Guerra Fria chegou aos tabuleiros, deu Estados Unidos na cabeça.

A disputa ocorreu há 50 anos, com uma série de partidas realizadas de 11 de julho a 1º de setembro de 1972 e que valiam o título mundial. Havia tanto em jogo que o episódio ficou conhecido como "o confronto do século".

De um lado estava Boris Spassky, 35, então campeão mundial e nascido em Leningrado (atual São Petersburgo), na União Soviética; do outro aparecia o americano Robert "Bobby" Fischer, 28, natural de Chicago e grande esperança do bloco ocidental.

Homens de terno sentados frente a frente em imagem branco e preta
Bobby Fischer, à esquerda, e Boris Spassky, à direita, durante a 17ª partida válida pelo título mundial de xadrez de 1972 - Acervo UH/Folhapress - 24.ago.1972

A hegemonia comunista era inquestionável nos tabuleiros. A partir de 1948, quando a Fide (Federação Internacional de Xadrez, na sigla em francês) regulamentou o torneio mundial, todos os campeões e vices tinham sido jogadores da União Soviética.

E não por acaso. Aproveitando que a afinidade da Rússia com o xadrez era mais forte que a de qualquer outro povo europeu desde pelo menos o século 16, o Partido Comunista transformou esse esporte em política de Estado.

Como resultado, na década de 1970, quando a Fide contava mais de 4 milhões de jogadores filiados, quase 90% eram soviéticos.

Se havia alguém capaz de lutar contra essa fábrica de campeões, era Bobby Fischer. Considerado por muitos o maior fenômeno da história do xadrez, o americano tinha um estilo agressivo e criativo, com poder de liquidar adversários com sequências heterodoxas de jogadas.

Carismático e precoce, Fischer começou a atrair as atenções muito cedo. Aos 13, deixava os adultos boquiabertos com o brilhantismo de seus lances; aos 14, tornou-se o mais jovem campeão nacional dos EUA.

Não tardou a virar celebridade. Era raro que ficasse um dia sem receber cartas de fãs, oriundas de todos os cantos dos EUA e até do exterior.

No começo dos anos 1970, apareceu tanto na TV que sua fama deu um salto: passou a ser parado nas ruas de Nova York para dar autógrafos. Fischer encarnava o herói capaz de vencer a Guerra Fria para os EUA –não num campo de batalha, mas numa disputa entre intelectos.

Daí por que o duelo Spassky X Fischer despertou um interesse que o xadrez jamais tinha visto. A Fide recebeu nada menos que 15 propostas de interessados em sediar a final do Mundial entre os dois.

Considerando as opções, eles escolheram a capital da Islândia, Reykjavik, que ofereceu premiação total de US$ 125 mil (cerca de US$ 900 mil hoje, R$ 4,5 milhões na cotação atual), sem contar direitos de TV. Antes disso, a maior bolsa num duelo de xadrez tinha sido de US$ 12 mil –um jogo do próprio Fischer.

Quando tudo estava resolvido, o americano, conhecido por seu comportamento excêntrico tanto quanto por sua genialidade, dava sinais de que desistiria, indicando insatisfação com as cláusulas financeiras.

Na undécima hora, o milionário britânico James Derrick Slater avisou que doaria US$ 125 mil para dobrar a bolsa.

E, se faltava um empurrão, Henry Kissinger, conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, telefonou para Fischer e pediu que ele fosse à Islândia derrotar os soviéticos no jogo deles.

Fischer foi, mas não sem exigir que lhe reservassem uma fileira inteira de assentos no avião e que lhe servissem no voo suco de laranja fresco, feito na sua frente.

Ao chegar, reclamou da iluminação (muito fraca), do tamanho das peças (muito pequenas), do tabuleiro (de pedra, ele queria de madeira), das câmeras de TV (poderiam distraí-lo).

O título seria disputado em até 24 partidas; a vitória valia 1 ponto, o empate, 1/2; quem fizesse 12,5 pontos seria o campeão, mas Spassky manteria o reinado caso terminasse 12 a 12.

No dia 11 de julho, sob o escrutínio de cerca de 200 jornalistas credenciados, Spassky ganhou a primeira. Na rodada seguinte, Fischer simplesmente não apareceu e perdeu por W.O., algo sem precedentes num campeonato dessa envergadura.

Mas, após 21 partidas, o norte-americano se sagrou campeão no dia 1º de setembro, vencendo por 12,5 a 8,5. Pelo feito, faturou pouco mais de US$ 150 mil (no mesmo ano, o US Open de tênis pagou US$ 25 mil ao campeão).

O duelo foi acompanhado ao vivo em vários países. No Brasil, boletins a cada 15 ou 30 minutos nas rádios atualizavam a situação da partida.

O confronto do século provocou um "boom" de interesse pelo xadrez mundo afora –bem nessa época despontava Henrique Costa Mecking, o Mequinho, maior enxadrista brasileiro em todos os tempos.

A supremacia comunista levou um golpe, mas por pouco tempo. No ciclo mundial seguinte, em 1975, Fischer abriu mão de defender a coroa, e o título ficou com o soviético Anatoli Karpov.

Dali até o final do século 20, todos os campeões mundiais de xadrez seriam da União Soviética ou da Rússia.

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