Descrição de chapéu Copa do Mundo 2022

Exaustão turva experiência de ir a quatro jogos de Copa do Mundo no mesmo dia

Mundial do Qatar permite maratona, mas esforço limita apreço pelo futebol e por aquilo que o cerca

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Doha e Al Khor (Qatar)

"Eu consigo chegar mais perto."

"Não vai dar. Pode me deixar aqui."

"Eu consigo, sim."

"Não! Eu desço aqui! O jogo já começou."

O motorista do táxi insistia em se aproximar do estádio Al Bayt, em Al Khor, onde se enfrentavam Espanha e Alemanha no domingo (27). Todas as ruas no entorno da arena estavam fechadas. Era preciso andar dois quilômetros.

A reportagem sabia que teria de caminhar o restante do trajeto. Era o único jeito.

Entre todos os aspectos únicos da Copa do Qatar, a possibilidade de ver mais de uma partida por dia é das que mais podem atrair o torcedor. A organização e a Fifa venderam o torneio como um Mundial de bolso. Dos oito estádios, cinco são em Doha. Os outros são em Lusail, Al Wakhra e Al Khor, todos nas cercanias da capital.

Torcedor do Japão descansa após o jogo contra a Costa Rica - Bernadett Szabo/Reuters

Também é um torneio com congestionamento de rodadas. Na fase de grupos, foram marcadas quatro partidas em quatro horários diferentes durante sete dias. Nunca houve algo parecido.

Seria possível ir a todos os estádios no mesmo dia? Um torcedor conseguiria comparecer aos quatro jogos? No domingo, dia das maiores distâncias entre as arenas que seriam utilizadas, a Folha resolveu tentar.

Foram 14h30 gastas, 10 gols marcados, 360 minutos de futebol, 168 quilômetros percorridos.

Quase deu certo.

  • 13h (horário do Qatar)
  • Costa Rica 1 x 0 Japão
  • Estádio Al Rayyan
  • Distância percorrida (do hotel ao estádio): 24 km
Não houve muito a ver em Japão x Costa Rica - Wang Lili/Xinhua

Os japoneses, excitados pela vitória na estreia sobre a Alemanha, percorriam os largos corredores da estação Al Riffa Mall of Qatar, dizendo "metro, this way!" (metrô, deste lado). É a frase de voluntária da Copa que fica perto do Souq Waqif, no centro de Doha, que viralizou nas redes sociais.

Torcedores discutiam com fiscais de trânsito porque queriam fazer o caminho em linha reta, o mais curto até o estádio. Isso é impossível. Na Copa do Mundo do Qatar, todos os caminhos são sinuosos, cheio de grades (geralmente em caracol) com o aparente objetivo de tornar o trajeto o mais longo possível.

Mesmo que o movimento de pessoas seja pequeno, como foi para Costa Rica e Japão, quase não há exceções. Três costa-riquenhos pediram que fosse aberta a passagem porque um deles estava em cadeira de rodas. Apenas esse pôde furar a barreira. Os demais tiveram de fazer o percurso normal, sob protestos.

O diálogo entre turistas e fiscal de trânsito foi difícil porque os torcedores falavam inglês com sotaque pesado. Funcionários de estádios e agentes públicos em Doha são educados, pacientes, mas falam inglês como Tiririca cantaria "Nessun Dorma". Ninguém consegue entender. Então, eles apenas apontam.

É o que eles mais fazem. Apontar. Voltaremos a isso mais à frente.

O problema de de ir a quatro partidas diferentes no mesmo dia é que a preocupação de como se deslocar entre um lugar e outro não permite que se aproveite o futebol. Mesmo que não haja muito para ver, como foi o caso em Japão x Costa Rica.

O gol da seleção da América Central causou sentimentos conflitantes em Alberto Ruiz, 39. Ele ficou quase todo o jogo no caminho entre o metrô e o estádio a segurar cartaz que dizia em inglês: preciso de um ingresso. Não conseguiu.

"Contra a Alemanha, vou tentar de novo", jurou, referindo-se ao confronto da próxima quinta-feira (1º).

  • 16h (horário do Qatar)
  • Bélgica 0 x 2 Marrocos
  • Estádio Al Thumama
  • Distância percorrida (do estádio anterior): 26 km
Torcida do Marrocos fez uma das mais belas festas da Copa - Odd Andersen/AFP

O caminho mais fácil seria utilizar transporte público até a central de ônibus de Doha e, em seguida, andar cerca de 700 metros para chegar ao estádio. Não há tempo hábil para isso. O intervalo entre os dois jogos é de apenas uma hora.

O jeito é pegar um táxi. É solução incompleta porque a organização do Mundial faz pagar caro quem não utiliza metrô e linhas de ônibus exclusivas para servir os estádios da Copa. A punição é andar muito mais e perder tempo.

São dois quilômetros, neste caso. A descida do carro é à beira da estrada.

"Quer que eu espere?", pergunta Omar, o motorista.

"Não precisa."

"Tem certeza?"

"Absoluta."

Como ficaria comprovado depois, era melhor ter pedido que ele aguardasse.

Achar a entrada correta exige conhecimento prévio ou sorte para acessar a arena pela região mais próxima da entrada marcada no ingresso. Pedir informação a um voluntário é receber resposta agradável, educada e sorridente. E errada. No Mundial do Qatar, considera-se dizer a frase "eu não sei" um crime imperdoável.

Então, a explicação sempre parece aleatória, com um lugar abstrato apontado: "É por ali".

Quase nunca é. A reportagem deu a volta, a pé, pelo entorno do estádio Al Thumama, esbaforida pelo calor, enquanto marroquinos abordavam garotas que passavam e pediam seus números de telefone. Como em um Tinder mundialista.

Dentro do estádio, eles cantaram o tempo todo. Foi uma das mais belas festas protagonizadas por uma torcida na Copa até agora. Ao menos isso valeu a pena.

Quando Aboukhlal fez o segundo gol, aos 47 do segundo tempo, a pressa venceu novamente. Era melhor ir para o próximo estádio. Encontrar o percurso foi mais um festival de dedos apontados para diferentes direções e frases "é por ali", em outra caminhada de mais de três quilômetros até achar o ônibus para o Khalifa International Stadium.

Os táxis e carros de aplicativos próximos estavam todos reservados. Um deles poderia ter sido Omar.

  • 19h (horário do Qatar)
  • Croácia 4 x 1 Canadá
  • Khalifa International Stadium
  • Distância percorrida (do estádio anterior): 12,5 km
Gol de Kramaric foi a senha para deixar o Khalifa Stadium - Antonin Thuillier/AFP

Estar do lado de fora do estádio e ouvir os hinos sendo tocados dá um certo senso de desespero. É preciso correr. Ou, neste caso, conseguir um ingresso.

"São 100 rials. Você vai querer ou não?"

A frase cortava qualquer chance de negociação com Mahmoud. Ele, por algum motivo, havia desistido de ir ao jogo e vendia sua entrada nos jardins que cercam a única arena que será 100% preservada após a Copa do Mundo.

A reportagem não tinha bilhete para aquela partida. Fechar negócio era inevitável.

O cambista fez expressão de desprezo diante da pergunta se o ingresso tinha o nome do portador e, por isso, poderia ser confiscado no acesso à arena.

"Claro que não. Ninguém vai pedir seu documento", assegurou.

Estava certo.

O Khalifa tem uma vantagem sobre a maioria das demais sedes do torneio. Não tem uma estação de metrô próxima. Tem duas. Isso facilita de maneira considerável a locomoção, mas os frequentadores do shopping Villagio Mall, com suas reproduções do canal e do céu de Veneza, competem pelos lugares no metrô após a partida.

Também há as grades de ferro em formato de caracol que obrigam todos a fazer sinuoso trajeto. Muitas grades. E sempre há alguém a apontar que o caminho é entre elas.

Quando Kramaric fez o terceiro da Croácia, aos 25 do segundo tempo, garantindo a vitória de sua seleção, era hora de ir embora. Nos acréscimos, Majer anotaria o quarto.

Quando isso aconteceu, Ahmed, motorista de aplicativo, já havia chegado e acelerava a caminho de Al Khor.

  • 22h (horário do Qatar)
  • Espanha 1 x 1 Alemanha
  • Estádio Al Bayt
  • Distância percorrida (do estádio anterior e na volta para o centro de Doha): 105,5 km
Quando Niclas Füllkrug empatou para a Alemanha contra a Espanha no estádio Al Bayt, o único desejo possível era pedir que o jogo acabasse logo - John Sibley/Reuters

Existe um momento em que o cansaço deixa de ser cansaço. Parece uma zona espiritual em que a dor só aparece se você para. Enquanto caminha, ela inexiste.

"É para este lado!", apontou o segurança. Mostrando uma fachada amarela à esquerda.

Justiça lhe seja feita, era mesmo.

O problema é que passar pelos detectores de raio-X em Al Bayt não significa estar na porta do estádio. Há ainda um caminho de 500 metros a percorrer e em subida. Para quem está descansado, é belo visual, com áreas verdes, fontes e bancos para os torcedores.

Além do cansaço, neste caso, havia a pressa. Espanha e Alemanha já jogavam havia 25 minutos.

"Quer carona?"

Emílio faz parte do programa internacional que leva voluntários da Fifa para trabalhar na Copa do Mundo. Estava adorando a experiência. Dirigia carrinho de golfe que levava convidados até a porta de acesso às tribunas. Estava sem fazer nada naquele momento e ofereceu a ajuda, aceita de imediato.

Ao chegar ao seu assento, a reportagem ficou sabendo que o placar era 0 a 0. A Espanha havia acertado uma bola no travessão. A torcida começava a ensaiar olas nas arquibancadas.

No segundo tempo, Álvaro Morata abriu o placar para os espanhóis. Niclas Füllkrug empatou. O único desejo possível naquele instante era pedir que o jogo acabasse logo. Ainda havia 50 quilômetros para voltar à capital. Quatro partidas no mesmo dia pareciam um exagero descomunal.

Uma hora depois, no ônibus, a dúvida era checar quais jogos seria possível ver na segunda-feira (28).

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