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Betty Milan

Um gol milagroso

Richarlison me fez esquecer o drama dos últimos anos e fez a palavra esperança ressoar

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Betty Milan

Escritora e psicanalista, é autora de “O Papagaio e o Doutor” e “Baal”; membro da Academia Paulista de Letras

Escrevi sobre o futebol nos anos 1970. Imaginei que o texto estivesse datado até ver o segundo gol de Richarlison na Copa.

O Brasil que interessa, o que respeita a lei, tem espírito de equipe e improvisa ressurgiu na torção vitoriosa do Charlie brasileiro. Traçou com o corpo um L no ar e a bola emplacou. Um gol milagroso que me fez esquecer o drama dos últimos anos e fez a palavra esperança ressoar aqui e no resto do mundo. O verde-amarelo se tornou novamente símbolo do talento e do Brasil.

O gol de Richarlison evoca a capoeira e obriga a considerar a importância da cultura negra. Também a ela nós devemos a cultura do brincar, que Joãozinho Trinta exaltava, na trilha de Oswald de Andrade, para quem o Carnaval é a religião nacional e a alegria é a prova dos nove. Será que depois do jogo alguém ainda duvida disso?

Richarlison chuta para marcar gol contra a Sérvia
Richarlison chuta para marcar gol contra a Sérvia - Meng Dingbo/Xinhua

O Braaasiiil!, que parecia perdido, entrou de novo em cena mostrando que o estilo do nosso jogador não deixou de existir, embora de 1995 para cá o futebol tenha mudado muito. O jogo se acelerou e, como me disse Platini em entrevista de dezembro de 2013, as regras foram alteradas.

"Ninguém mais perde tempo para buscar a bola quando ela sai do campo. O goleiro não está mais autorizado a pegar com a mão a bola passada por um jogador do seu time. Deve reenviá-la, chutando. O estilo do futebol se globalizou. Depende menos do jogador do que do técnico e do time ao qual ele pertence."

Apesar da globalização, o jogo do Brasil é revelador da nossa cultura. Desde pequenos, somos preparados para inventar. Por isso, o nosso futebol produz jogadores capazes de fazer o impossível acontecer, propiciar a experiência da surpresa da qual nenhum ser humano prescinde.

Antes de pertencer a um time estrangeiro e ser formatado pelo técnico do mesmo, o jogador brasileiro se forma na cultura do brincar. Pode ele se esquecer das origens, mas estas não se esquecem dele e se manifestam explícita ou sorrateiramente, levando o público ao delírio da alegria. De repente, o vento da capoeira arrebata e ele se torna maior do que ele mesmo. O passado se incorpora nele e faz o presente acontecer.

Bem poderia o Braaasiiil servir de modelo para transformar a realidade deste país, como quer Richarlison, que destina uma parte do seu salário a quem é pobre como ele foi.

Isso na infância, quando morou com a tia Audiceia, numa casa em ruínas, que a chuva alagava. Dormia amontoado com os primos e tios e vendia picolé para completar a renda.

Hoje, ele tem uma casa em Barretos "para ajudar as pessoas sem grana", financia, na cidade natal, um clube de futebol que sustenta mais de cem famílias. Não nega chuteira para criança que precisa dela e diz que espera incentivar outras pessoas a ajudar o próximo.

Richarlison merece respeito pelo seu discurso tão consequente quanto o seu jogo. Obrigada, Charlie.

Capa de "O País da Bola", de Betty Milan
Capa de 'O País da Bola', de Betty Milan - Reprodução
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