Após calar protestos na Qatar, Fifa pode enfrentar mais problemas na Copa do Mundo feminina

Entidade ameaçou suspender capitães dos times masculinos que usassem braçadeira com as cores do arco-íris; mesmo rigor pode não funcionar no torneio feminino

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tariq Panja
Londres | The New York Times

Apenas quatro meses depois de permitir que uma briga pública sobre as braçadeiras com as cores do arco-íris ofuscasse o início da Copa do Mundo no Qatar, a Fifa enfrenta questões semelhantes. Às vésperas do Mundial de seleções femininas, discute-se se atletas terão permissão de expressar apoio aos direitos dos homossexuais.

É um embate que todos os envolvidos concordam que não deveria acontecer novamente.

Braçadeira "One Love", que foi banida pela Fifa na Copa do Mundo do Qatar, em 2022 - Reuters - 23.nov.22

Atingido por uma forte reação pública e interna em novembro, quando a entidade máxima do futebol impediu o uso da braçadeira que promovia uma campanha de justiça social, ameaçando suspender os jogadores que participassem, o presidente da Fifa, Gianni Infantino, disse em março que lições foram aprendidas com os eventos no Qatar.

Prevendo um possível duelo com algumas das melhores jogadoras do mundo –no torneio em que elas são as grandes protagonistas–, Infantino prometeu que uma solução estaria em vigor antes da abertura da Copa do Mundo Feminina na Austrália e na Nova Zelândia, em 20 de julho.

No entanto, mesmo enquanto oferecia essas garantias, a Fifa já havia encontrado uma nova maneira de irritar tanto atletas quanto parceiros.

Sem consultar os organizadores da Copa, a entidade quase concordou com um acordo de patrocínio que tornaria a Arábia Saudita, por meio de sua marca de turismo Visit Saudi, um importante patrocinador do torneio feminino. A colaboração teria feito com que dezenas de jogadores gays entrassem em campo para partidas em estádios anunciando viagens para um país que não reconhece relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo e onde a homossexualidade continua sendo uma ofensa criminal.

Foi somente após semanas de silêncio, negociações de crise nos bastidores e repreensões públicas de autoridades de ambas as nações anfitriãs que a Fifa confirmou que o acordo estava morto. Infantino classificou toda a controvérsia sobre isso como "uma tempestade em uma xícara de chá". Para outros, era muito mais do que isso.

"Na liderança, você precisa se posicionar sobre as questões pelas quais você tem forte interesse", disse James Johnson, CEO da Football Australia, órgão regulador do esporte no país.

"Essa é uma que nos pegou de surpresa. Foi sobre isso que conversamos com nossos jogadores, nossos governos, nossos parceiros. E também tivemos uma boa noção do sentimento geral em torno da comunidade australiana de que este contrato não estava de acordo com a forma como vemos o torneio se desenrolar. Então decidimos, junto com a Nova Zelândia, que iríamos bater o pé neste caso."

As jogadoras da Austrália ficaram particularmente frustradas com a proposta de patrocínio saudita, disse Johnson. Tanto que a situação fortaleceu a posição da equipe de que o torneio deveria ser usado como uma plataforma para promover os valores que elas defendem. Pelo menos uma jogadora australiana disse que a decisão da Fifa de levar a Copa do Mundo para o Qatar e sua disposição de se curvar às atitudes locais foi instrutiva.

"Acho que a última Copa do Mundo, a Copa do Mundo masculina, foi um grande exemplo do que está acontecendo no mundo e do quanto ainda há coisas erradas", disse Emily Gielnik, uma atacante que foi membro da seleção feminina da Austrália por mais de uma década.

Australiana Emily Gielnik (à dir.), em ação pelo Asto Villa, abre o placar em partida contra o AFC Fylde - John Clifton - 29.jan.23/Action Images via Reuters

"E acho que algumas equipes estavam tentando representar isso e, obviamente, jogar a Copa do Mundo naquele país foi muito controverso, por vários motivos. E, com sorte, podemos incorporar e nos assemelhar a isso e ter orgulho de quem somos como pessoas".

Várias federações que terão seleções no torneio, incluindo as da Inglaterra e da Holanda –dois dos países que mais brigaram com a Fifa por causa das braçadeiras no Qatar–, e também potências proeminentes como Estados Unidos e Alemanha, têm um histórico de apoiar suas jogadoras e as causas mais importantes para elas.

Embora nenhum plano para protestos semelhantes tenha sido divulgado, as jogadoras também podem ter menos probabilidade do que os homens de dar um passo para trás, caso a Fifa tente reprimir suas mensagens, como fez no Qatar. As equipes que irão para a Austrália e a Nova Zelândia apresentam algumas das atletas femininas mais importantes do mundo, muitas das quais se sentem à vontade para falar o que pensam sobre a Arábia Saudita ou sobre qualquer outro tema, e que foram encorajadas por sucessos recentes em lutas tão diversas quanto igualdade de remuneração –e o design dos uniformes.

O jogo feminino, disse Gielnik, está mais à frente do que o masculino quando se trata de falar livremente sobre questões sociais, e ela previu que times e jogadoras não hesitariam em aproveitar a plataforma oferecida pela Copa do Mundo.

"Acho que algumas coisas serão controversas", disse Gielnik, uma das várias jogadoras gays da seleção australiana. "Depende do caminho que tomamos e do caminho que outros países seguem."

Para a Fifa, desistir do acordo Visit Saudi não foi fácil. As autoridades sauditas ficaram frustradas com a perda do acordo, parte de um conjunto de patrocínios que a Arábia Saudita havia feito com a federação para promover o reino. A visita ao país foi adicionada discretamente à lista de patrocinadores na Copa do Mundo do Qatar no ano passado e, depois, no Mundial de Clubes, em janeiro, no Marrocos.

Claramente frustrado por ter que mudar os planos e decepcionar a Arábia Saudita, que provou ser um dos principais apoiadores de seus próprios interesses, Infantino repreendeu os críticos da Fifa sobre a pressão para cancelar o acordo com o Visit Saudi para o campeonato feminino. A Austrália, apontou ele, mantém vínculos econômicos contínuos com o reino.

"Existe um padrão duplo que eu realmente não entendo", disse Infantino. "Não há problema. Não há contrato. Mas é claro que queremos ver como podemos envolver patrocinadores sauditas e do Qatar no futebol feminino em geral."

Johnson, o executivo do futebol australiano, e outros responderam que as atitudes no Golfo em relação à homossexualidade eram apenas parte do problema. Em um evento recente organizado pelo Alto Comissariado Australiano em Londres para marcar os 100 dias até o início da Copa do Mundo, os dirigentes falaram sobre como o torneio também funcionaria como uma vitrine para promover o turismo para os dois países-sede, destacando outra razão pela qual o acordo planejado pela Fifa para destacar o turismo saudita causou tanta angústia.

"Poderia ter sido Visit Finland e ainda assim teria sido um problema", disse Johnson.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.