Sombra de escândalo no futebol feminino paira sobre a Copa do Mundo

Técnica acusada de criticar o corpo de jogadoras e atleta que ajudou a denunciar abusos de dirigentes nos EUA se juntam na seleção da Irlanda

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Jeré Longman
Austin (Texas) | The New York Times

Enquanto a seleção feminina da Irlanda se prepara para disputar sua primeira Copa do Mundo de futebol, sua técnica e uma meio-campista se encontram em lados opostos de um escândalo de abuso que abalou o futebol nos Estados Unidos. Os conflitos, porém, se fundiram numa aliança provisória e pragmática.

Vera Pauw, 60, técnica da Irlanda e ex-técnica do Houston Dash, da Liga Nacional Feminina de Futebol dos EUA (NWSL), foi acusada no final do ano passado de criticar o corpo de jogadoras e de ser uma "maníaca por poder" que procurava controlar a vida das atletas quando treinava a equipe americana, em 2018.

Em uma coletiva de imprensa em Austin, na sexta-feira (7), Pauw classificou as acusações, incluídas num relatório contundente organizado pela liga e seu sindicato de jogadoras, como "absolutamente ridículas e falsas".

Sinead Farrelly (à esq.), da Irlanda, disputa bola com Crystal Dunn, dos EUA, durante amistoso preparatório para a Copa do Mundo - Dustin Safranek - 8.abr.23/USA TODAY Sports via Reuters

Sinead Farrelly, 33, natural de um subúrbio da Filadélfia que também tem cidadania irlandesa, foi uma denunciante corajosa que ajudou a levantar o véu de indiferença da liga em relação à má conduta de treinadores. Farrelly e outras jogadoras fizeram acusações de abuso sexual, verbal e emocional que levaram quatro treinadores da NWSL a serem banidos permanentemente no início deste ano.

Pauw não foi acusada de impropriedade sexual, não treinou Farrelly na liga e não estava entre os banidos. Para retornar à NWSL, no entanto, ela foi informada de que deve aceitar a responsabilidade por seus atos. Essa restrição não se aplica ao futebol internacional.

Pelo menos nos próximos meses, Pauw, que é holandesa, e Farrelly, que encerrou sua ausência de sete anos do futebol no mês passado ao retornar à NWSL e estreou pela Irlanda no sábado, devem colaborar enquanto a Irlanda se aproxima da Copa do Mundo, que será disputada entre julho e agosto, na Austrália e na Nova Zelândia.

Técnica da seleção da Irlanda, Vera Pauw; ela foi citada em um relatório sobre abusos na liga americana de futebol feminino - Molly Darlington - 11.out.22/Reuters

Naquela estreia em Austin, uma derrota por 2 a 0 para o tetracampeão mundial Estados Unidos, Farrelly buscou trazer uma presença tranquilizadora ao começar no meio de campo da Irlanda após apenas dois treinos. Ela não atuou na segunda partida de preparação contra as americanas, uma derrota por 1 a 0 na terça-feira (11), pois Pauw disse que a excluiu do time inicial para "prevenir lesões".

A treinadora disse que conversou com Farrelly tentou deixá-la à vontade. Elas compartilham o desejo de se apresentar no maior palco do futebol, mas também têm uma semelhança horrível. No ano passado, Pauw disse que havia sido estuprada por um dirigente do futebol holandês quando era jogadora e que também tinha sido agredida sexualmente por outros dois homens.

Durante 35 anos, ela manteve o abuso em segredo, disse Pauw num comunicado em julho, permitindo que as memórias "controlassem minha vida, me enchessem de dor e angústia diárias".

Em um sentido amplo, a união Pauw-Farrelly pode ser vista como um sinal desanimador de como as acusações de impropriedade são generalizadas no futebol feminino.

Em nível pessoal, a técnica está tentando restaurar sua reputação, que ela acredita ter sido injustamente manchada. E a jogadora tenta reiniciar uma carreira, antes promissora, mas que murchou prematuramente pelo que ela descreveu como coerção sexual, manipulação emocional e destruição de sua autoconfiança por um ex-técnico, Paul Riley.

Em setembro de 2021, Farrelly disse ao The Athletic que Riley, um dos melhores treinadores do futebol feminino, a coagiu a ter um relacionamento sexual durante anos e uma vez a manipulou para beijar uma companheira de time do Portland Thorns na frente dele, em troca de um treino menos extenuante na equipe. A companheira de time, Mana Shim, confirmou o relato de Farrelly e fez outras alegações semelhantes de má conduta contra Riley. Ele negou ter feito sexo com qualquer jogadora.

As revelações abriram a cortina do abuso sistêmico no futebol feminino e levaram a uma ampla repercussão em toda a NWSL. Uma investigação liderada por Sally Q. Yates, que foi vice-secretária de Justiça dos Estados Unidos, descreveu o mau comportamento de Riley ao longo dos anos como um "segredo aberto".

Farrelly disse no sábado que seu retorno não teria sido possível sem a catarse de contar sua história publicamente.

"Essa cura e a libertação disso tinham que ocorrer antes que eu pudesse jogar novamente", disse ela.

Farrelly anunciou sua aposentadoria em 2016, resultado de lesões psíquicas e físicas, incluindo aquelas sofridas num acidente de carro em 2015. Mas ela voltou para a NWSL no mês passado e assinou com o Gotham FC, dizendo em um comunicado que queria ser uma jogadora confiável e, ao mesmo tempo, "ter perdão e compaixão comigo mesma" e "inspirar outras pessoas a seguirem seus sonhos, mesmo que possam parecer distantes de seu alcance".

O retorno de Pauw à NWSL permanece incerto. Em dezembro, no relatório organizado pela liga e seu sindicato de jogadoras, ela foi acusada de envergonhar as atletas do Houston em 2018 sobre seu peso e tentar "exercer controle excessivo sobre seus hábitos alimentares", inclusive desencorajando o consumo de frutas por causa de seu teor de açúcar, "sem correlação aparente com desempenho ou saúde".

Ela também foi acusada de exercer controle sobre a vida pessoal das jogadoras enquanto morou no mesmo conjunto de apartamentos.

As acusações incluíam bater na porta de uma jogadora à noite e se convidar para entrar; favorecer algumas atletas, convidando-as para um café com biscoitos; restringir as jogadoras de usar a piscina durante a tarde; e desencorajá-las de levantar pesos por crer que isso as deixava muito "volumosas".

Pauw defendeu-se vigorosamente na coletiva de imprensa de sexta-feira.

"Se há uma coisa que eu não faço é criticar o corpo", disse ela. "Não há balança no meu vestiário, não há medição de porcentagens de gordura."

"Qual é o critério?", disse Pauw queixosamente. "Você não pode educar as jogadoras para tirar o melhor proveito de si mesmas com algo que é tecnicamente apenas treinamento?"

Ninguém teria reclamado se ela fosse um treinador homem, disse Pauw.

"Como treinadora, você não está segura em seu treinamento", disse ela. "Você não está segura para fazer seu trabalho. Há critérios duplos aqui."

A Copa do Mundo começa em julho. Farrelly e Pauw estão olhando para frente, buscando reparo e renovação.

Pauw disse que Farrelly "confia em mim; ela confia na verdade".

Farrelly parece mais preocupada. Ela disse que estava cautelosa ao jogar para uma técnica acusada de abuso, mesmo que não fosse delito sexual.

"Acho que está na hora de construirmos confiança e esse tipo de coisa", disse Farrelly. Ela afirmou que assumiu um risco, deu um salto de fé, esperando que a seleção irlandesa fosse um ambiente saudável para ela. "É um trabalho constante, eu acho."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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