Descrição de chapéu Olimpíadas 2024 Boxe

Defensores de igualdade em disputa feminina criticam COI e cobram regras claras para seleção de atletas

Após polêmica sobre gênero com boxeadoras em Paris, ex-atletas e especialistas pedem que comitê fixe parâmetros

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São Paulo

Seria exagero dizer que o COI (Comitê Olímpico Internacional) está nas cordas –expressão usada no boxe quando um lutador fica acuado, prestes a ser nocauteado. Mas a controvérsia sobre gênero envolvendo duas boxeadoras nas Olimpíadas 2024 tem feito a entidade levar sopapos de estudiosos do tema e defensores de igualdade de condições nas competições femininas.

Os críticos cobram regras claras do ponto de vista biológico para definir quem pode ser considerado elegível a competir na categoria feminina.

O barulho começou quando a lutadora argelina Imane Khelif venceu a italiana Angela Cariani na primeira fase do torneio de boxe: aos 46 segundos do primeiro assalto, depois de levar um direto no rosto, Cariani abandonou a luta se queixando da força da oponente.

Khelif, assim como a taiwanesa Liu Yu-ting, tinham sido impedidas de participar do Mundial amador de Nova Déli no ano passado, organizado pela IBA (Associação Internacional de Boxe). Segundo a entidade, elas não passaram nos testes de elegibilidade para a disputa feminina.

Imane Khelif na semifinal contra a tailandesa Janjaem Suwannapheng, vencida pela argelina
Imane Khelif na semifinal contra a tailandesa Janjaem Suwannapheng, vencida pela argelina - Peter Cziborra/Reuters

O presidente da IBA, Umar Kremlev, desqualificou as boxeadoras, outro integrante do IBA as chamou de homens, mas as informações sobre os testes a que foram submetidas para embasar sua exclusão são erráticas.

A associação chegou a dizer que tratou-se de exames de DNA e de testosterona, mas se contradisse num comunicado oficial, segundo o qual elas "não foram submetidas a um exame de testosterona, mas a um teste separado e reconhecido, cujos detalhes permanecem confidenciais".

A controvérsia atingiu proporções globais, opondo conservadores e progressistas e virando um manancial para desinformação e histeria nas redes sociais, tudo alimentado pela disputa política (e geopolítica) entre o COI e a IBA –comandada por um aliado de Vladimir Putin, num momento em que a Rússia vive guerra com o COI após ter sido banida de Paris-2024 pela invasão à Ucrânia.

Retirada da organização do torneio de boxe em 2019 e expulsa do movimento olímpico em 2023 pelo comitê, a IBA tem um histórico de rolos –o antecessor de Kremlev foi acusado de liderar o crime organizado no Uzbequistão; o presidente anterior a este foi afastado por denúncias de corrupção e má gestão.

O COI, que desde as últimas Olimpíadas organiza por conta própria o torneio de boxe dos Jogos, ignorou as informações da IBA sobre as boxeadoras e as considera mulheres, com base na declaração de suas certidões de nascimento. Alega que ambas disputam competições internacionais de boxe há muitos anos na categoria feminina, incluindo os Jogos de Tóquio-2020.

"As duas coisas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo: o COI pode ter acertado em banir a IBA e errado em ignorar o sexo biológico —em favor do gênero legal– como critério para a competição feminina", disse à Folha Doriane Lambelet Coleman.

Ela é professora de direito da Universidade Duke, nos Estados Unidos, estudiosa do tema e autora de "On Sex and Gender – A Commonsense Approach" (sobre sexo e gênero, uma abordagem pelo senso comum).

Ex-atleta suíça-americana (foi campeã universitária nos 800 m nos dois países), Coleman reconhece que não há elementos para classificar as boxeadoras como transgênero, mas ressalta evidências de que que elas podem ter sexo genético XY e/ou altos níveis de testosterona, tornando desigual uma disputa na categoria feminina.

Ela faz alusão aos testes da IBA que o COI achou por bem ignorar em nome de uma política de inclusão.

A acadêmica cobra que o COI tenha regras claras para definir quem pode participar dos torneios femininos nos Jogos. "Dado que as diferenças de sexo são a razão pela qual temos competições de sexo separadas, as regras de elegibilidade precisam ser baseadas no sexo, não no gênero legal ou na identidade de gênero."

"As regras que implementam este princípio", acrescenta Coleman, "precisam ser definidas bem antes das principais competições para que todos estejam cientes do que são".

Ao lado de Coleman na cobrança está a tcheca naturalizada norte-americana Martina Navratilova, uma das maiores tenistas de todos os tempos. Homossexual casada com uma mulher, ela foi por anos um ícone do movimento gay, mas, assim como Coleman, tem sido criticada por ativistas transgênero por ser contrária à participação de mulheres trans ou com elevado índice de testosterona em competições femininas.

A ex-tenista tcheca naturalizada norte-americana Martina Navratilova (à dir.) com sua esposa, a russa Julia Lemigova, no baile de gala pré-Grammy num hotel em Beverly Hills, California
A ex-tenista tcheca naturalizada norte-americana Martina Navratilova (à dir.) com sua esposa, a russa Julia Lemigova, no baile de gala pré-Grammy num hotel em Beverly Hills, California - Robyn Beck - 3.fev.2024/AFP

Na última semana, Navratilova discutiu, via rede social, com a senadora trans espanhola Carla Antonelli por causa da controvérsia das boxeadoras. Foi chamada de transfóbica por Antonelli, rebateu a crítica e por fim indicou que iria bloquear a política no X (ex-Twitter).

Junto com Coleman e com a ex-nadadora dos EUA Donna de Varona (duas medalhas de ouro nos Jogos de Tóquio-1964), Navratilova fundou o Women's Sports Policy Working Group (Grupo de Trabalho sobre Políticas Esportivas Femininas), cuja missão é "afirmar e fortalecer o direito legal de meninas e mulheres a competições esportivas separadas e single-sex".

O grupo afirma que respeita e encoraja a participação esportiva de pessoas transgênero, desde que essa inclusão não fira os direitos das mulheres a competições justas.

"Apoiamos os direitos dos atletas transgênero de se identificarem como acharem adequado e de serem tratados como mulheres ou homens ou ‘não binários’ ou ‘de gênero fluido’ sem levar em conta o sexo em outras esferas do esforço humano, onde a biologia não é o mais relevante, como a maioria dos empregos, salas de aula, moradia, direito da família, etc."

A ex-atleta Doriane Coleman, professora de direito na Duke University e defensora de igualdade de condições em competições femininas
A ex-atleta Doriane Coleman, professora de direito na Duke University e defensora de igualdade de condições em competições femininas - Divulgação

No entanto, observa o grupo, "o esporte competitivo é um dos poucos lugares onde as diferenças biológicas de sexo importam. Os homens têm maior força, tamanho, velocidade e massa muscular. Os homens têm corações, pulmões, mãos, pés e crânios maiores. As mulheres têm mais gordura corporal e ela é distribuída de forma diferente da gordura corporal dos homens".

"Essas enormes diferenças sexuais resultam em vantagens de desempenho para os homens em quase todos os esportes. Nos esportes, o sexo importa. É o determinante de desempenho mais poderoso e é por isso que a segregação formal de sexo é onipresente em todo o esporte."

O médico endocrinologista australiano David Handelsman, da Universidade de Sydney, especialista em andrologia e autor de artigos científicos que buscam traçar critérios científicos/biológicos para definir a participação separada por sexo em competições esportivas, compartilha da visão do grupo, apesar de não fazer parte dele.

"O problema parece ser a ignorância pública em relação a DSDs [ou distúrbio de desenvolvimento sexual, que faz mulheres produzirem hormônios masculinos] e XY e por que atletas assim não deveriam competir contra mulheres [biológicas], por uma questão de justiça", disse Handelsman à Folha.

Basicamente, defende o andrologista, transgênero ou pessoas com disfunções hormonais que aumentam o nível de testosterona não devem ser autorizados a competir em eventos femininos. Suas pesquisas demonstraram que a testosterona circulante é determinante das vantagens físicas masculinas que ditam as diferenças sexuais no desempenho esportivo.

"O COI se desonrou repetidamente em questões intersexuais e transgênero. É um caso de reductio ad absurdum [redução ao absurdo]", afirma o médico, citando a expressão latina para uma hipótese que termina desmoralizada por sua própria premissa.

Handelsman critica os "especialistas" instantâneos na mídia" e diz que a maioria dos que "sabem do que estão falando [ele inclui Coleman nesse time] considera o histórico do COI nessa área irremediavelmente equivocado e injusto com a vasta maioria das atletas femininas".

Indagado sobre como ter certeza de que Imane Khelif e Liu Yu-ting poderiam ser transgêneros ou DSDs, ele respondeu: "A privacidade provavelmente torna impossível ter certeza, mas a única interpretação plausível é que são DSDs de algum tipo".

Outros especialistas, como a brasileira Katia Rubio, professora da Faculdade de Educação da USP, discordam da necessidade de parâmetros científicos. Ela coloca em dúvida os testes que fixam tais regras por defender que o determinante biológico hoje já não define o que é homem ou mulher.

"A identidade passa pela questão social. Tem de entrar nessa balança os argumentos sociais e psicológicos. No entanto, a discussão segue no âmbito biológico e, infelizmente, quem dá as cartas nesse contexto é a medicina, o que é um absurdo", afirmou.

Pelo fortalecimento de tal visão na sociedade contemporânea, o COI deixou de realizar testes de sexo para definir quem pode participar das competições femininas e leva em conta a informação do passaporte. O comitê informou, porém, que os organizadores do torneio de boxe dos Jogos têm meios "para garantir a imparcialidade da competição".

O COI disse ter sido avisado pela IBA em 2023 sobre a situação das boxeadoras, mas observou que os testes realizados "não são legítimos". Para o COI, a argelina e a taiwanesa "foram vítimas de uma decisão repentina e arbitrária da IBA, (...) especialmente considerando que disputavam competições de alto nível há muitos anos".

Em entrevista coletiva, o presidente do COI, Thomas Bach, declarou que "não se trata de um caso de DSD". Em seguida, o COI publicou uma correção informando que o dirigente quis dizer na verdade que não era um caso de transgênero.

Pressionado, o COI tem dito que não pode mudar as regras durante uma competição, mas o porta-voz do comitê, Mark Adams, sugeriu que o episódio das boxeadoras pode provocar alterações para os Jogos de Los Angeles-2028.

"Não é uma questão preto no branco, e nós do COI estaríamos muito interessados em ouvir um consenso sobre isso e seríamos os primeiros a agir sobre isso caso um entendimento comum fosse alcançado."

Colaborou André Fontenelle

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior do texto deixou de informar que, apesar de o presidente do COI, Thomas Bach, ter afirmado numa entrevista coletiva que não se tratava de um caso de DSD, o comitê fez uma retificação informando que o cartola quis, na verdade, dizer que não era um caso de atleta transexual.

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