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Não se combate a fome só com alimento, diz fundadora da ONG Amigos do Bem

ONG criada pela empresária Alcione Albanesi completa 30 anos atendendo 150 mil por mês no sertão nordestino e com arrecadação recorde em megaevento beneficente

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São Paulo

Em trajes de gala, um grupo de 3.000 empresários, artistas e outras personalidades entrou, na noite da última terça-feira (3), em uma vila sertaneja com casas de taipa, paredes de barro e telhados de palha.

O cenário, montado em uma casa de shows da zona oeste de São Paulo, foi a maneira encontrada por Alcione Albanesi para trazer à elite do Sudeste uma amostra da realidade que ela acompanha há três décadas em viagens ao Semiárido nordestino.

Alcione Albanesi em Inajá, Pernambuco, uma das localidades atendidas pelos Amigos do Bem - Renato Stockler - 19.ago.19/Folhapress

Apresentado por Pedro Bial e Rodrigo Faro e com show do cantor Daniel, o jantar beneficente foi organizado por Alcione em comemoração dos 30 anos dos Amigos do Bem, ONG que ela fundou em 1993 para ajudar localidades pobres do Nordeste.

Com uma plateia que incluía os empresários Elie Horn, da Cyrela, e Luíza Trajano, da Magazine Luiza, além de artistas como o apresentador Luciano Huck, a noite terminou com R$ 38 milhões arrecadados, um recorde da instituição.

Réplica de vila sertaneja no evento de 30 anos da ONG Amigos do Bem, no Espaço das Américas, em São Paulo
Réplica de vila sertaneja no evento de 30 anos da ONG Amigos do Bem, no Espaço das Américas, em São Paulo - Folhapress

O megaevento sintoniza com os números superlativos da ONG criada pela ex-empresária, que foi vencedora em 2019 da Escolha do Leitor, categoria de votação popular do Prêmio Empreendedor Social, correalizado pela Folha e pela Fundação Schwab.

O que começou com uma ação entre amigos para levar alimentos ao sertão transformou-se em um projeto que constrói casas, fábricas, escolas e centros de saúde e atende 150 mil pessoas em 300 povoados de Pernambuco, Alagoas e Ceará.

No ano passado, Alcione ganhou outra ferramenta para convencer potenciais doadores: uma análise do Idis (Instituto de Desenvolvimento do Investimento Social) segundo a qual o SROI (retorno social sobre investimento) dos Amigos do Bem é de R$ 6,45 —o que significa que cada real doado se transforma em R$ 6,45 na ponta.

"Isso só acontece porque não trabalhamos apenas com assistencialismo, mas com uma transformação geral dos povoados onde atuamos", afirma ela.

Com o retorno do Brasil a patamares de insegurança alimentar de 30 anos atrás, ela defende que a única forma de acabar com a fome é romper o ciclo da miséria com ações de educação, saúde e geração de renda.

Os 30 anos da ONG coincidem com o retorno do Brasil ao Mapa da Fome da ONU. O aumento da miséria foi perceptível na atuação de vocês? Sim. Trabalhamos na ponta e vivenciamos isso mês a mês, com cada vez mais pessoas nos procurando em busca de ajuda.

São povoados e povoados pedindo socorro porque estão passando fome. Na nossa última ação de Natal, vimos crianças de cinco anos que se animaram mais com a cesta básica do que com o kit com brinquedos que entregamos.

A insegurança alimentar no Nordeste chega a 68% da população. Isso deveria ser inaceitável em um país como o nosso, uma potência econômica, agroalimentar e energética. A desigualdade social é uma vergonha para todos nós. Temos que transformar a indignação em ação.

Vocês começaram levando caminhões de comida no Natal e ampliaram a atuação para projetos de educação e geração de renda. Como foi essa mudança de perspectiva? Não basta distribuir alimentos para acabar com a fome? O alimento é a base, é o começo de tudo, porque quem tem fome não é livre, quem tem fome não aprende. Agora: não é possível conter fome só com alimento.

Aí vêm as ações para o desenvolvimento local. Escolas de qualidade, áreas produtivas gerando trabalho, empreendedorismo para os jovens. Tem que olhar para o todo.

Hoje temos uma geração transformada, que não passa mais fome. Nossos pedagogos, que se formaram com nossas bolsas de estudo, eram crianças que corriam no mato seco com fome, sem perspectiva de futuro.

Como é que você sonha com fome? Como sonhar quando você olha no entorno e não vê nada além de mato seco? As nossas crianças hoje podem sonhar.

Houve um recorde de doações para ações sociais na pandemia. Isso se manteve? De fato, na pandemia tivemos nosso maior movimento de solidariedade, mas isso acabou se perdendo. As empresas e pessoas físicas passaram a ter dificuldades, tivemos uma queda de mais de 30% nas doações, nossas arrecadações de alimentos baixaram de 250 para 68 toneladas mensais. Isso nos preocupa porque ao mesmo tempo em que a fome aumentou, as doações caíram.

Como convencer empresários das grandes cidades a apoiar essa causa que pode parecer tão distante? Estamos em 2023 e o sertão, que sofre há séculos o descaso do homem, continua um local distante, abandonado. É uma miséria invisível para quem está nos grandes centros urbanos. Nós mostramos para os empresários que existe o sertão, que é uma realidade.

Vocês distribuem 4,5 mil toneladas de alimentos por ano. Por que ainda precisam dessa ação mais assistencial? A fome é uma batalha diária. Qualquer projeto que venha a ser executado tem que olhar primeiro para isso porque quem tem fome não é livre, quem tem fome não aprende.

Nós vamos de povoado em povoado distribuindo 30 mil cestas básicas todos os meses, mas na nossa metodologia a entrega de alimentos vem com um projeto de transformação. Fazemos o acompanhamento médico, odontológico, palestras de conscientização, temos psicólogos na equipe. Não é só dar o alimento, é transformar a família.

Vocês vão lançar um documento com o modelo de atuação da ONG. É uma metodologia que pode ser aplicada em outras regiões? Sim. Em qualquer região que tenha problemas sociais. Estamos com um manual que explica cada pilar do projeto e queremos que seja replicado para que mais pessoas sejam beneficiadas.

Não começamos sabendo. Passamos por momentos difíceis, fomos aprendendo até chegarmos a esse modelo de desenvolvimento social sustentável.

Como combater a fome no Semiárido de forma mais duradoura? É preciso romper o ciclo da miséria. De onde vem a fome? A pessoa é analfabeta, só consegue trabalhar na roça. A roça depende da chuva, a chuva não vem. O entorno não tem nada: não tem indústria, empresa. A erradicação da pobreza é consequência de um trabalho de base que envolve educação, geração de renda, acesso à internet. Estamos fazendo isso há 30 anos, mas nosso trabalho está só no começo.

A causa 'Fome de quê? Soluções que inspiram' conta com o apoio da VR e da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais.

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