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'Tem que ser bem preta', ensina criadora das bonecas Abayomi

Lena Martins conta a origem das bonecas e explica por que elas não têm olhos e boca

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São Paulo

Sempre que conta sua história, Lena Martins fica com uma sensação engraçada. “As pessoas acham que eu moro num castelo”, ela diz. “E que eu nado num mar de dinheiro!”, continua. “E, na verdade, eu vivo aqui, numa casinha no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, fazendo as minhas encomendas.”

A realidade é mesmo diferente, mas dá para arriscar um palpite sobre por que é tão comum imaginarem Lena levando essa vida de conto de fadas —é que Lena parece ter poderes mágicos.

Lena Martins, 70 anos, com algumas de suas criações - Tércio Teixeira/Folhapress

De suas mãos, há mais de 30 anos, surgiu uma tradição que sobrevive até hoje, e se mostra cada vez mais poderosa: Lena inventou as Abayomi, bonecas negras feitas de pano, sem costura nem cola, e que, nestes anos todos, já se multiplicaram e ganharam o mundo.

Tudo começou em 1988, durante o primeiro Encontro Nacional de Mulheres Negras, um evento que reuniu 450 mulheres para conversar sobre jeitos de garantir a todas as brasileiras melhores condições de vida. Lena estava lá, organizando tudo.

“Eu já trabalhava com bonecas de palha de milho naquela época, e voltava para casa tão pulsante das palestras dessas mulheres, era um universo tão rico. E eu ficava enlouquecida em casa fazendo amarrados e embolados com tecido, e foi surgindo uma figura. Uma boneca”, lembra.

Nasceu sem nome, essa primeira boneca de todas, até que uma amiga fez uma pesquisa e sugeriu a Lena a palavra “Abayomi”. “Significa ‘o meu presente’, no sentido de viver o momento”, explica.

Estava selado, assim, o futuro das bonecas de Lena Martins, natural do Maranhão, hoje com 70 anos de idade. “Meu trabalho nasceu nesse contexto, e mostra a minha busca de identidade. Eu não sabia se eu era preta, se eu era branca, se eu era índia...”, diz.

Lena conta que a primeira Abayomi era de tecido azul. “Depois, elas foram saindo pretas. Nunca fiz nenhuma cinza, marronzinha, só preta, pretinha. Como eu estava dentro de uma militância, toda a minha indignação pelas injustiças eu revelava com as mãos”, resume.

Também artesã, a paraense Cláudia Müller conheceu as Abayomi em uma pesquisa na internet sobre cultura popular e bonequeiros. “Me apaixonei principalmente pela forma como elas são construídas e moldadas, e me encanta o fato de a boneca não ter um rosto definido”, fala.

Pois é, as Abayomi não têm nem olho, nem boca, nem nariz. E são sempre “pretas, bem pretas”, como explica sua criadora. “Eu jamais ia saber expressar todo tipo de povo, de todas as etnias que vieram pro Brasil. Tem um povo que tem lábios largos, olhos e nariz diferentes”, diz Lena.

“Assim, aquele espaço do rosto é aberto pra que quem olhe para ela a veja de acordo com as pessoas que vivem em seu entorno.”

“Penso que as bonecas idealizadas por Lena têm grande importância na arte e na cultura popular brasileira. Estão muito além de ser um brinquedo ou uma peça decorativa. Representam a história e a memória de nossos ancestrais, os povos africanos”, opina a artesã Cláudia.

“Fomos ensinados, e aprendemos de forma equivocada, que a história desses povos começou a partir dos navios negreiros. Isso é um erro que deve ser reparado e ressignificado. Minha inspiração, ao reproduzir uma boneca Abayomi, vem do respeito à arte, história e memória do povo negro.”

Para fazer cada Abayomi, Lena leva em média de três a quatro horas. A boneca que levou mais tempo para ficar pronta —40 dias— foi uma do tamanho de uma pessoa de verdade. “É a maior boneca que já fiz, e tem nome de Vovó Tuninha, em homenagem à minha avó.”

Lena procura usar material reaproveitado sempre que possível, e conta que raramente compra algum item para compor as Abayomi. Por isso, por dentro, as bonecas são de várias cores, até que recebem o acabamento preto. “Já tem muita coisa no mundo, temos que aproveitar o que tem”, ensina.

As bonecas são vendidas por encomenda (instagram.com@abayomi.lena). Lena também dá oficinas variadas, e a que mais gosta é a que mostra como se faz um bebê Abayomi.

“Eu acho maravilhoso ter inventado um negócio que é útil, porque de coisa inútil já estamos cheios”, comenta. “Já ensinei mais de 58 mil pessoas em vários estados. Outro dia, fiz uma live com mulheres da Bélgica e de Córdoba. Elas fazem Abayomis pra conseguir dinheiro e distribuir para as crianças.” MF

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