Descrição de chapéu Todo mundo lê junto

Cabelo afro, alvo de comentários racistas nas redes, é motivo de orgulho para crianças

Caso da miss Duda em MG e novo livro com dicas de penteados mostram a importância de valorizar os cachos

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São Paulo

Duda resolveu que queria virar uma princesa quando viu um desenho na TV. Sua mãe prometeu que compraria um vestido igual àquele que aparecia na história, mas, para Duda, mesmo esse esforço todo não resolveria o que ela via como um problema: "Meu cabelo não é ‘caído’", disse à mãe.

Adriana de Sousa, então, procurou imagens de princesas com cabelo black, igual ao de Duda, com cachos e armado, para mostrar à filha de 5 anos que ela poderia, sim, ser uma princesa como aquelas —só que elas não existiam. Cacheadas, sim, mas black mesmo, nada.

Duda, 5 anos, Miss Mirim de Minas Gerais - Luciano Nunes/Divulgação

Assim começou a relação da Duda com os concursos de pequena miss, que elegem meninas bonitas que se inscrevem para competir entre si —a ideia era que, já que ainda não existia uma princesa de black, Duda seria a primeira, e ainda na vida real.

Ela foi escolhida para representar o estado de Minas Gerais em um torneio que terá crianças do país inteiro, e sua família ficou tão feliz que, em maio passado, postou uma foto de Duda na internet para comemorar.

Mas foi aí que surgiu um problema de verdade: pessoas que nem conheciam Duda e seus pais comentaram na foto, dizendo que o cabelo dela não seria de princesa, mas, sim, de bruxa.

"Pessoas falaram que ela não tem padrão de miss porque tem cabelo afro. Isso me magoou muito, não só pelo racismo, mas porque ser uma princesa era o sonho dela", lembra Adriana, mãe de Duda, que trabalha como massagista em Sabará (MG), onde mora.

"Pensei em tirá-la do Mundo Miss e das redes sociais porque achei aquilo pesado", lamenta.

Duda ainda é pequenininha e não tem acesso às redes sociais. Por sorte, não ficou sabendo das coisas negativas que foram ditas a seu respeito. E, enquanto tudo isso acontecia, ela seguia firme e forte curtindo sua história encantada.

E, de tão forte que Duda é, recentemente ela comentou com sua mãe que as outras princesas, aquelas dos desenhos de TV e dos livros, deveriam arrumar o cabelo como o seu. "Ela já não queria mais ser igual às outras pessoas. Agora, acha que as outras princesas é que devem ser iguais a ela", diz Adriana.

"Eu e meu esposo chegamos à conclusão de que não é a Duda quem tem que recuar, e que a gente não pode dar uma importância dessas para outra pessoa, poder tirar o sonho de alguém. A Duda pode ser o que ela quiser."

"O meu cabelo é lindo!", diz Duda, animada na entrevista à Folhinha. "Uma miss é alegre e tira fotos. E eu gosto de livros e de brincar."

"Ela é bonitinha!", atesta Guido, 5 anos, morador de São Paulo. "O cabelo dela é mais comprido do que o meu."

Guido, 5 anos, no quintal de sua casa, em São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress

O pai de Guido, o diretor de arte Fernando Timba, contou ao filho sobre a situação vivida pela família de Duda lá em Minas. Ele imaginou, então, que a menina tenha ficado triste com tudo que se passou. "Eu não ia ficar triste, eu ia embora direto", acredita Guido, pensando como seria se o mesmo acontecesse com ele.

"Eu não gosto que falem mal do meu cabelo. Se falassem, eu ia falar 'não gostei!'", completa. E, se estivesse perto de Duda na hora dos comentários ruins, Guido diz que iria ajudá-la.

Só tem uma coisa que Guido não gosta em sua aparência: "Queria usar óculos", reclama.

As escritoras Joana Gabriela Mendes e Mari Santos acabam de lançar juntas "Manual de Penteados para Crianças Negras", pela Companhia das Letrinhas. A ideia de criar este livro veio porque elas queriam que crianças e adultos entendessem como cuidar de um cabelo crespo, sabendo como ele é versátil.

"É também para evitar repetir histórias que aconteceram com tantas pessoas negras. É uma maneira de olhar para criança que eu fui", explica Joana. "Ah, ele não é um livro só para meninas. Todos os penteados podem ser feitos por todos e, inclusive, alguns foram pensados especialmente para os meninos."

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Livro 'Manual de Penteados para Crianças Negras', da Companhia das Letrinhas - Divulgação

Joana, 36 anos, lembra que sua mãe, seu pai e sua avó, que eram seus cuidadores, até tentavam fazer penteados diferentes no seu cabelo quando ela era criança.

"Mas eles também não tinham muitas ferramentas. Quando entrei na pré-adolescência, minha mãe aprendeu a fazer bantu knots, os coquinhos de coquinhos, que estão no livro. Daí usei durante um bom tempo."

Mari Santos, 41 anos, se lembra de que, na infância, parecia muito difícil cuidar dos seus cabelos.

"Eram momentos de dor, uma enorme dificuldade de quem me penteava, durante aqueles momentos que deveriam ser de afeto. Em crianças com cabelos lisos o processo parecia sempre mais tranquilo", conta.

"Achava que os pais de crianças negras não haviam recebido o manual de cuidados que acompanhava as crianças brancas."

No livro, as famílias aprendem 12 penteados e 2 cortes de cabelo. Joana conta que, para arrumar cabelos cacheados em casa, não é preciso muito. "[É bom ter] Um bom creme para pentear, se possível, um pente com dentes largos e acessórios mil: conchas, liguinhas, contas, tic tacs."

Ela também recomenda uma hidratação no cabelo, mesmo que seja em casa, de 15 em 15 dias. "Fora isso, os 3 Cs do livro: cuidado, carinho com o crespinho", resume.

"Princesas como Duda precisam saber que fomos retirados de reinados e que, por exemplo, valores culturais importantes como a congada vieram do reino do Congo, pela corte da Rainha Ginga. Nossos ancestrais construíram o Brasil", comenta Mari, ao saber da situação vivida pela menina Duda.

Joana concorda: "Eu fico impressionada como a gente não teve avanços. Isso [comentários maldosos] era algo que eu ouvia quando era criança, que minha mãe também ouvia quando era criança. O que quer dizer que estamos, como sociedade, protegendo pouco as crianças negras".

Ela gosta de enumerar nomes como a rainha de Sabá, as guerreiras ahosi de Daomé e dinastias de faraós para mostrar que existiram reinos e reinados de pessoas negras, mas que foram apagados da História.

"É fundamental que os adultos comecem a discutir antirracismo, para que o ciclo se encerre e para que essas meninas não sofram violências que tantas pessoas negras adultas já sofreram em algum momento do passado", completa.

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com as crianças

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