Você acha que todo livro para criança deveria ter final feliz?

Escritora lança histórias com pais vampiros e zumbis que não cuidam bem dos filhos

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São Paulo

Você acha que todas as obras para crianças deveriam ter final feliz? A escritora Dirce Waltrick do Amarante acha que não, e acaba de lançar dois livros que não terminam como conto de fadas, naquela de que "todos viveram felizes para sempre".

Bem longe disso, aliás. Um deles se chama "Meu Pai É um Vampiro" e o outro, "Meus Pais São Zumbis" (editora Cultura e Barbárie; R$ 20 cada um).

Ilustração do livro 'Meu Pai É um Vampiro', de Dirce Waltrick do Amarante, que fala de um pai que não trata bem a família
Ilustração do livro 'Meu Pai É um Vampiro', de Dirce Waltrick do Amarante, que fala de um pai que não trata bem a família - Reprodução

Os dois livros contam histórias de famílias disfuncionais, e é bem importante entendermos o significado da palavra disfuncional, porque aí fica mais fácil perceber por que a autora fala em vampiro e zumbis para se referir aos pais.

Toda família tem problemas, mas há algumas que funcionam de um jeito bem ruim, com muitos conflitos, pais que têm uma relação desequilibrada, não cuidam dos filhos ou exageram na proteção deles, o que os deixa inseguros, entre outras consequências.

Nessas famílias, o clima é pesado, triste, e as relações entre as pessoas não são harmoniosas. São famílias que não funcionam bem, ou seja, são disfuncionais –já aquelas que funcionam de forma mais equilibrada são chamadas funcionais.

Os livros retratam o sofrimento das crianças em famílias disfuncionais. Em "Meu Pai É um Vampiro", a narradora da história conta que seu pai guardava sua mãe em um caixão dentro de casa. Depois de hipnotizá-la e dominá-la, ele até a deixava sair um pouco, ir a festas, e só nessas horas a mãe ficava feliz, mas depois era obrigada a voltar para casa e ficar no caixão. O pai vampiro também colocava os filhos dentro do caixão.

Dessa forma fantasiosa, a escritora representa algo da vida real e, infelizmente, comum, que são famílias em que o homem trata a mulher e os filhos de um jeito autoritário, manipulador e muitas vezes violento. São relações chamadas de tóxicas.

O livro "Meus Pais São Zumbis" começa com a narradora dizendo: "Quando meus pais morreram, eu ainda nem tinha nascido". Ela, então, passa a infância convivendo com pais zumbis e desenvolvendo estratégias para tentar ressuscitá-los. Uma delas é ficar doente e outra é demonstrar amor por eles. As estratégias não dão muito certo.

Com o tempo, adoecer já não faz efeito sobre pais zumbis. Demonstrar amor é arriscado, e a filha explica por quê: "Pais mortos não gostam da demonstração de carinho, pois podem se sentir na obrigação de reviver e isso tira deles a tranquilidade do além."

Assim como o vampiro é uma forma de simbolizar um pai perverso, a figura dos zumbis é utilizada pela escritora para falar de pais que vivem sem muito sentimento, sem dar carinho e atenção aos filhos, parece até que não têm vida.

Ilustração de 'Meus Pais São Zumbis', de Dirce Waltrick do Amarante
Ilustração de 'Meus Pais São Zumbis', de Dirce Waltrick do Amarante - Reprodução

Dirce Waltrick do Amarante, a autora dessas histórias, contou para a Folhinha que sua ideia, ao escrever os livros, foi mostrar "crianças que vivem em famílias disfuncionais, que têm problemas reais". A escritora diz que, geralmente, essas crianças percebem suas próprias histórias como se elas fossem uma fantasia, às vezes bem assustadora.

Dirce acredita que os livros podem ser um refúgio para quem passa por esses traumas, uma forma de mostrar a elas que não estão sozinhas. Muitas vezes, essas crianças conhecem histórias felizes de famílias e não sabem que há outras tristes como a delas. Os adultos também podem ler e, quem sabe, perceber que vivem situações parecidas com as contadas nos livros e tentar fazer algo para melhorar as coisas.

Já as crianças que vivem em famílias funcionais podem conhecer outras que tenham pais zumbis e vampiros, e os livros podem ajudá-las a entender esse sofrimento dos amigos. A autora lembra que é importante que a gente conheça diferentes realidades.

Ela comenta que livros para crianças não costumam tratar de temas difíceis. Aqueles que raramente fazem isso acabam dando uma ideia de que tudo ficará bem. "Será?", Dirce questiona. Tem uma expressão popular que explica bem o jeito da autora: ela não quer "colocar a sujeira debaixo do tapete". Prefere olhar para a sujeira e limpá-la. Ou seja, para tentar resolver os problemas, é preciso olhar para eles, falar deles.

Um outro livro da autora, que será lançado neste mês, também aborda sentimentos dolorosos, mas não situações brutais como a das famílias com pais vampiros e zumbis. "A Natureza das Coisas & Outros Contos" (editora Patuá; R$ 60) cria histórias muito inspiradas para falar de perdas, decepções e angústias que são vividas por todos nós.

A gente fica pensativo lendo histórias assim, e até se diverte com algumas delas, como a que conta que a cadeira queria se transformar em uma mesa, a mesa sonhava em ser uma pia, a pia queria se tornar um forno, e por aí vai.

É o jeito que a escritora encontrou para falar de momentos em que a gente não se sente muito feliz com o que é, e gostaria de ser de outro jeito. É meio angustiante, mas totalmente normal. E, se a gente olha para essa sensação e entende que é algo que todo mundo vive, a angústia vai passando e podemos até ver graça nisso.

Você já se sentiu assim?

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