Livro revela engenho de Flusser para construir seu próprio mito

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Crédito: Folhapress O filósofo tcheco Vilém Flusser (1920-1991) que veio ao Brasil durante a Segunda Guerra
O filósofo tcheco Vilém Flusser (1920-1991) que veio ao Brasil durante a Segunda Guerra

RAFAEL CARDOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O HOMEM SEM CHÃO: A BIOGRAFIA DE VILÉM FLUSSER (muito bom) * * * *
AUTOR Gustavo Bernardo & Rainer Guldin
EDITORA Annablume
QUANTO R$ 87,10 (370 págs.)

Por volta de 1973, Vilém Flusser (1920-1991) colocava os pontos finais na autobiografia filosófica de Bodenlos, que só viria a ser editada após sua morte. À época, havia publicado três livros no Brasil, sem grande repercussão, e dois outros acabavam de aparecer na França.

É verdade que já conquistara alguma notoriedade com seus textos na imprensa –como a coluna "Posto Zero", nesta Folha, que durou menos de três meses em 1972.

Era promissor também o convite que recebera de Ciccillo Matarazzo para integrar a equipe da 12ª Bienal de São Paulo, função que lhe permitiu viajar para a Europa e constituir uma rede profissional por lá.

Mesmo assim, as realizações eram poucas para qualquer pretensão biográfica. Para um pensador que propagava a dúvida como mote intelectual, Flusser possuía extraordinária certeza de que sua obra ficaria para a posteridade.

Tanto que soube preservar seus manuscritos, correspondências e outros papéis, fontes imprescindíveis para "O Homem Sem Chão".

QUATRO MÃOS

A biografia talvez não seja a que Flusser desejasse, mas é a que merece. Escrita a quatro mãos, entre duas línguas, por autores com estilos e projetos intelectuais discrepantes, traduz toda a fragmentação que marcou sua trajetória.

Unidos no propósito de destrinchar o sujeito que escolheram por objeto, os biógrafos divergem na forma de se desincumbir da tarefa.

As duas primeiras partes, por Gustavo Bernardo, repisam a formação de Flusser em Praga e sua vida no Brasil, com destaque para influências decisivas como Guimarães Rosa, Anatol Rosenfeld, Curt Meyer-Clason, Miguel Reale.

São narradas de modo pouco convencional, aproximando-se da "ficção filosófica" de Flusser e chegando mesmo a mimetizar sua escrita por momentos.

As duas últimas partes, por Rainer Guldin, são mais circunspectas. Traçam em minúcia a vida de Flusser após seu retorno à Europa e sua ascensão à celebridade nos anos 1980.

Ancoradas em correspondências com Abraham Moles, Fred Forest, Louis Bec, Andreas Müller-Pohle, Stefan Bollmann, entre outros, detalham sua reinvenção como pensador de fotografia e mídias e, por extensão, revelam os bastidores dos meios intelectuais na França e na Alemanha dessa época.

"O Homem sem Chão" contribui de modo convincente para extrair sentido do acúmulo e dispersão da obra de Vilém Flusser.

O principal mérito do livro é de desvelar todo o engenho que o biografado dedicou a construir seu próprio mito.

Os autores não recuam dos aspectos aflitivos de sua personalidade, incluindo aí a capacidade de transigir com órgãos e instituições que ampararam a ditadura brasileira.

O forte narcisismo de Flusser levou-o a manipular fatos e ocultar fontes, assim como antagonizar amigos e subjugar familiares.

Nesse sentido, quem salta das páginas do livro como protagonista insuspeita é Edith Flusser, a viúva morta em 2014.

Ao desviar dos subterfúgios do errático homem sem chão, a nova biografia consegue renovar a relevância do seu pensamento para o século 21.

Trata-se de paradoxo bem flusseriano, digno do humor irônico que figurava entre suas maiores qualidades.

RAFAEL CARDOSO é historiador da arte e escritor, autor de "O Remanescente" (Companhia das Letras)

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