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'A escrita é invenção, não um processo de aplicação de ideias', diz Jacques Rancière

Em novo livro, filósofo francês publica ensaio sobre 'Primeiras Estórias', de Guimarães Rosa 

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O filósofo francês Jacques Rancière
O filósofo francês Jacques Rancière - Ulf Andersen/Aurimages/AFP
São Paulo

Jacques Rancière, professor emérito da Universidade de Paris 8, é hoje um dos principais filósofos e críticos franceses em atividade —seus livros, como “O Ódio à Democracia” (ed. Boitempo), ganham traduções no mundo todo. Ele foi o principal discípulo do filósofo marxista Louis Althusser (1918-90), com quem depois rompeu.


Suas leituras do mundo contemporâneo, ou da relação entre estética e política, são obras de referência. Ele acaba de lançar na França seu último livro, “Les Bords de la Fiction” (as margens da ficção), em que um dos capítulos vai interessar especialmente aos brasileiros.


Nele, Rancière analise “Primeiras Estórias”, de Guimarães Rosa. O ensaio está na nova edição da Serrote, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles, cujo lançamento é na Feira Plana, que começa nesta sexta (23) na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. O filósofo falou à Folha sobre Rosa e o novo livro.

 

Folha - Como o senhor descobriu Guimarães Rosa?
Jacques Rancière -
Descobri “Grande Sertão: Veredas” na minha primeira visita ao Brasil, em 1967. Quando comecei “Les Bords de la Fiction”, busquei exemplos de ficção minimalista e fragmentária. 
Queria escrever sobre Machado de Assis. Não consegui fazê-lo e foi o livro vizinho na seção brasileira de minha biblioteca, “Primeiras Estórias”, que me chamou a atenção. Dei de cara com este trecho, no começo do conto “Partida do Audaz Navegante”: “Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma”.


Aquele era exatamente o tema do livro: a fronteira improvável onde algo acontece, quando não deveria acontecer. Não banquei o especialista em literatura brasileira, mas estava feliz por alargar um pouco o cânone “modernista” dos meus compatriotas.

O sr. aponta na obra “Primeiras Estórias” a elaboração de uma poética diferente da descrita por Aristóteles. Que diferença é essa?
Aristóteles baseia a racionalidade ficcional sobre uma hierarquia entre dois tipos de temporalidade: há a crônica, que diz só como as coisas acontecem, uma depois da outra, e a ficção poética, que diz como as coisas podem acontecer, de acordo com uma sequência de causas e efeitos a produzir e inverter expectativas.


Ele restringe, dessa forma, a ficção a uma categoria privilegiada, aqueles que vivem no tempo da ação, oposto ao da reprodução, que é o das pessoas comuns.


A revolução da ficção moderna foi rejeitar tal hierarquia e se concentrar no momento qualquer. Este é o tempo dos eventos sensíveis sem hierarquia, que incluem a existência comum, tradicionalmente excluída da ficção. É o momento em que o “acontece” está sempre próximo do “nada acontece”.


As “Primeiras Estórias” ilustram perfeitamente esse deslocamento da ficção moderna. Elas mostram que a ficção é construída palavra a palavra, como prova permanente dos poderes da invenção —latentes em toda situação ordinária e na linguagem.

Guimarães Rosa apresenta expectativas de um desenrolar natural a cada conto, mas que nunca acontece. Por que essa característica é importante?
Esse é apenas um tipo de conto no livro, mas significativo da autodestruição da ficção à moda antiga. Nós esperamos uma história, como no o enterro de um assassino que prenuncia uma vingança, em “Os Irmãos Dagobé”. E nada acontece. A própria lógica da espera se vê rejeitada. Ou ela é recusada de forma afirmativa em outros contos ou é a ação que anula essa lógica.


Um jovem busca uma vaca fugitiva e encontra o amor que não tinha sequer ideia de procurar (“Sequência”). A história é o que não esperávamos. É fácil quando se trata de eventos fabulosos acontecidos a seres lendários. Outra é quando acontece aos vaqueiros.

Parte da crítica ressalta o misticismo e os aspectos teológicos de Rosa. Por que esse viés não lhe pareceu correto?
Não digo que é incorreto. Mas essas análises são numerosas e não há necessidade de mim para isso. E sempre me interessei primeiro pelas obras em si, por aquilo que se desenlaça na superfície das palavras e das imagens.


A escrita é um processo de invenção, não de aplicação de ideias. Portanto, parti do fato de que tais histórias realizam um equilíbrio singular entre o universo tradicional dos contos de fadas e o mundo moderno da novidade realista, consagrado à gente sem importância que vive em um mundo onde nada acontece.

Que conceito é esse de “margens da ficção” que o senhor desenvolve?
Meu principal objeto é a abolição da antiga fronteira entre existências que são dignas da ficção e existências que não o são. Estudo como a ficção moderna atendeu às aspirações desses homens e mulheres do povo que queriam escapar do universo da repetição e da reprodução ao qual se dedicavam.


Mostro como a inclusão daqueles que antes estavam às margens levou a ficção a sair de seus limites. É um modo de refutar argumentos preguiçosos sobre o autotelismo ou o elitismo da ficção moderna.

A ficção hoje tem forte tendência documental. O sr. resolveu analisar um autor do modernismo tardio brasileiro. Como sua pesquisa se relaciona a esse contexto?
Esse ceticismo [com a ficção] parte de gente que pensa provar a própria superioridade. Toda a história da ficção moderna é uma alternância dos valores atribuídos às palavras “realidade” e “ficção”.


Balzac já dizia que nenhum livro teve o poder da notícia. “Ontem, às 16h, uma jovem se jogou no rio Sena de cima da Pont des Arts”. [Joseph] Conrad mostrou que a imaginação nunca inventou nada além de virtualidades contidas em uma sombra, anedota ou frase ouvida ao acaso.


O cinema tem provado que a forma documental, na qual se organizam fatos comprovados, implica em invenções ficcionais mais ricas do que as necessárias para se criar uma ficção plausível. E o cinema mais interessante hoje é aquele que embaralha documento e ficção. A ficção não é o oposto da realidade, mas a construção de um senso de realidade.

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