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Livros

'O Sol na Cabeça' revela escritor capaz de ver o mundo com liberdade

Geovani Martins constrói um universo variado de personagens com dramas humanos

ROBERTO TADDEI

o sol na cabeça

  • Preço R$ 34,90 (120 págs.)
  • Autor Geovani Martins
  • Editora Companhia das Letras

É preciso ler "O Sol na Cabeça", contos do estreante carioca Geovani Martins. Não apenas pelo fato de o autor apresentar personagens crescidos em favelas cariocas nas últimas décadas, sobreviventes de UPPs, guerras de facções, milícias e incursões da polícia e Exército. Afinal, se poderia dizer com alguma ironia, é tudo ficção.

Mas, sim, porque "O Sol na Cabeça" revela um autor capaz de olhar o mundo com liberdade, sem raiva ou ressentimento, mesmo tratando de personagens vítimas de segregação racial e exclusão social. E o faz no melhor da tradição do realismo literário.

O escritor carioca Geovani Martins - Zo Guimaraes/Folhapress

O mérito do livro de Martins não está no estilo ou na forma —seus contos são tradicionalíssimos—, mas na apropriação consciente de narradores clássicos que conseguem se aproximar com verossimilhança do ponto de vista de personagens tão distantes desse registro: o pichador, o maconheiro, o craqueiro, o soldado do tráfico.

Um risco para textos escritos com tamanha proximidade de personagens da favela seria o exotismo —visto, é claro, da perspectiva de leitores brancos de classe média.

De certa maneira é o que pode sugerir a leitura isolada do conto que abre o livro, "Rolézim", uma narrativa em primeira pessoa marcada pelas inflexões da linguagem oral dos morros, com suas regras fascinantes de concordância: "Chegamo na praia com o sol estalando, várias novinha pegando uma cor com a rabeta pro alto, mó lazer".

Mas Martins vai além disso. Ao longo dos contos, intercala diferentes focos narrativos mesclando a linguagem oral nos discursos diretos com o português regulado pela academia nos indiretos. O bilinguismo dos textos produz assombros.

Em "Estação Padre Miguel", por exemplo, o narrador em primeira pessoa discute com os amigos, em boa gíria, a compra de mais maconha.

Em meio aos diálogos, pensa: "De um momento pro outro tudo se desfaz, tudo desaba, e ficamos sozinhos frente ao abismo que é a outra pessoa. Daí vem uma vontade de falar não sei o quê, só pra tentar reunir uns pedaços da gente, meia dúzia de restos espalhados pelo mistério que é a convivência".

São personagens que pensam livremente, apesar das impossibilidades que o contexto brasileiro lhes reserva. Uma demonstração rara em boa parte da literatura associada à questão no país. Não há resquícios da noção opressora de que humanidade é aquilo que se dá entre os brancos do Leblon.

Aqui é o marginalizado quem constrói o mundo e enxerga o que o centro não consegue ver. Ao fazer isso, o marginalizado se coloca no centro e recusa a própria categorização por antonomásia. À margem ficam todos os outros.

Na somatória dos contos, o autor constrói um universo variado de personagens com dramas, afinal, humanos. E não seria isso a literatura: uma maneira de mostrar que, apesar de tudo, ainda somos humanos?

Eis aí a pequena maravilha desse livro: enfraquecer o privilégio dos grupos dominantes na batalha pela representação do que é o humano na literatura brasileira.

ROBERTO TADDEI é escritor e coordenador da pós-graduação em formação de escritores do Instituto Vera Cruz


Lançamento com bate-papo e sessão de autógrafos em São Paulo

segunda-feira (19/3), às 19h, no teatro Eva Herz, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (av. Paulista, 2.073). A mediação do evento com o escritor, promovido em conjunto pela editora Companhia das Letras e pela Folha, será feita pelo escritor e colunista da Folha Antonio Prata

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