Mariana Delfini
São Paulo

ESPELHOS

  • Quando sex. e sáb., às 21h, e dom., às 19h, até 15/4
  • Onde Companhia do Feijão (r. Dr. Teodoro Baima, 68; feijão@ companhiadofeijão.com.br)
  • Preço contribuição voluntária; 12 anos

“Espelhos” poderia ser alocado na extremidade de uma escala que organizasse as maneiras pelas quais a literatura não dramática alimenta o teatro, desde a mera inspiração até a transposição de textos para o palco. 

O solo de Ney Piacentini, com direção de Vivien Buckup, apresenta “O Espelho”, de Machado de Assis, e o conto homônimo de Guimarães Rosa em versão integral, cada palavra dos dois clássicos da nossa literatura.

O espetáculo, no entanto, embaralha qualquer tentativa canhestra de escalonar as contaminações entre as artes e resulta em uma potente adaptação das obras. 

O solo se alimenta dos textos e dos contextos históricos e literários originais e os ultrapassa, ao lançar mão de procedimentos que projetam novos sentidos. Sem pirotecnia: o ordinário de tais recursos é a chave para a surpreendente teatralidade da peça.

Trata-se, nos dois textos, de sondagens sobre a natureza da alma. 

Em Machado, o personagem de Jacobina relata a amigos o momento em que se deparou com um espelho que deixou de refleti-lo. O reconhecimento social e a constituição da identidade pelo olhar do outro estão em pauta nesse conto de 1882.

No de Rosa, de 1962, um narrador conta ao leitor de seus experimentos para retirar as sucessivas capas que compõem a imagem de uma pessoa e, assim, enxergar sua própria essência.

A encenação responde ao conto de Machado acolhendo o público na penumbra de uma sala: tapete, cadeiras, escrivaninha, lustre de velas.

Na intimidade da plateia próxima do palco, Piacentini se alterna entre o narrador e o próprio Jacobina e se endereça aos espectadores com uma circunspecção irônica que traduz, no corpo, os narradores machadianos.

É na passagem para o espelho rosiano que a encenação dá seu “salto mortale” —“digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram”, explica ao final de seu conto Guimarães Rosa, que cito, “mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas”.

Um primeiro diálogo com o texto de Rosa, que descreve um “despojamento”, se abre na escolha precisa de um recurso hoje banal, o de desmontar cenário e trocar figurino em cena. 

A transição reverbera os dois contos e seus respectivos momentos literários: vai do realismo ao moderno, do retrato para o ensaio, do narrador do século 19 para o homem em desmonte.

O corpo em desequilíbrio de Piacentini estranha e comenta o espelho rosiano. Seu atrevimento épico puxa o tapete dos espectadores, inclusive daqueles que chegam à sua sala em plena posse dos clássicos. O solo, enfim, mergulha na vertigem da exploração metafísica não pelas palavras, porta de entrada da literatura, mas pela concretude desestabilizada.

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