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Livros Cinema

Atriz e ex-mulher desdobra imagem unívoca de Godard em livro

Em 'Um Ano Depois', Anne Wiazemsky escreve as memórias de Maio de 68 em Paris

Inácio Araujo

Um Ano Depois

  • Preço R$ 49,90 (176 págs.)
  • Autor Anne Wiazemsky
  • Editora Todavia
  • Tradução Julia da Rosa Simões

"Um Ano Depois" começa por ter um grande personagem (Jean-Luc Godard), num momento muito especial (o Maio de 68 em Paris), num posto de observação privilegiado (o apartamento no Quartier Latin onde a autora vivia com seu marido, Godard).

Anne Wiazemsky (1947-2017) estava no centro do daquele momento tão particular, em que luta política e reinvenção da vida, transgressão e fantasia, liberação e delírio se cruzavam continuamente.

E, no entanto, errar ao escrever as memórias daquele tempo é muito mais fácil do que parece. E disso a autora passa bem longe.

Antes de chegar ao livro propriamente dito, talvez seja melhor explicar seus antecedentes: Anne era uma jovem atriz, estreando em "A Grande Testemunha", de Robert Bresson. Godard foi ver as filmagens e se encantou com a garota.

Quase 20 anos mais velho, precisou suar muito para conseguir que o avô da moça aprovasse o casamento. E o avô era ninguém menos que François Mauriac, Nobel de Literatura e voz destacada do pensamento católico francês.

Mauriac enfim consentiu com o casamento da protegida com o artista apaixonado. E Godard estava apaixonado o bastante para trocar seu apartamento da Rive Droite por outro, na Rive Gauche, onde Anne queria morar. Nesse apartamento Godard filmou "A Chinesa", com Wiazemsky no principal papel feminino.

"A Chinesa" foi o farol para muitos dos estudantes que desencadeariam, pouco depois, o Maio de 68 em Paris. Portanto, é apenas lógica a escolha de Anne Wiazemsky de fazer de Godard o protagonista de suas memórias. Era ele o gênio, o grande libertador do cinema, o cineasta dos cineastas. O marido estava no centro dos acontecimentos.

Ou nem tanto. Aos poucos, no entanto, essa imagem unívoca começa a se desdobrar, como um quadro cubista. Em Godard passam a conviver o marido protetor, o artista inquieto, o aprendiz de militante político. Por vezes esse personagem, que julgamos tão seguro de si e de sua inteligência, parece apequenar-se diante de Jean-Jock, o jovem amigo militante, que ousa chamar Anne de "camarada".

"Em primeiro lugar, pare de ficar me chamando de camarada toda hora, em segundo, não gosto dessa falta de cerimônia, acabamos de nos conhecer", ataca ela.

Existe ali um tanto da garota burguesa, que estudou num colégio católico. Mas também a mulher que vê o marido ser seduzido pelo rapazola que o introduz no mundo do marxismo-leninismo.

Ao longo daquele mês, Wiazemsky vai descobrindo um personagem bem mais múltiplo e complexo do que imaginava. Godard, o gênio inquieto, é capaz de enfrentar a socos as armas dos policiais, mas também parece um menino que tenta acompanhar os mais jovens e absorver os ideais e modos de ação revolucionária.

As descobertas da jovem causam sobressaltos, mas não parecem ser uma sombra em sua vida: Godard continua a ser o marido ídolo. É inegável, porém, que certa distância aparece entre ambos. Anne tem seus 20/21 anos nessa altura, conhece bem as pessoas de sua idade a ponto de ter sido paquerada por Daniel Cohn-Bendit. Conhece e não as leva tão a sério assim.

Aos poucos, no entanto, pequenas diferenças viram brechas. Anne é capaz de, na confusão de uma Paris paralisada pela greve, descobrir nos patins um meio de locomoção e diversão, enquanto Godard se afunda nos acontecimentos, discute, briga, aprende.

Acompanhamos a deriva godardiana, pronto a renegar a sua obra pregressa em nome do engajamento. Deixa todas as atividades para se juntar a Chris Marker na elaboração dos cine-tracts (pequenas peças de propaganda), prepara viagens para fazer filmes engajados, enquanto suporta com paciência levar adiante o filme com os Rolling Stones em Londres: precisa cumprir o contrato feito nos velhos tempos, quer dizer, alguns meses atrás.

Tudo isso o leva, ainda, a cada vez mais renegar também a carreira da jovem atriz que era Anne: ela recebe convites para filmar com Bertolucci, Marco Ferreri, Pasolini. Enfim, ela se entrega à velha "arte romântica" que, acreditava, o Maio de 68 havia liquidado, em vez de acompanhar Godard em seus filmes engajados.

Também aos poucos se revela outra faceta de Jean-Luc: o companheiro exemplar se deixa substituir pelo marido ciumento, o artista agora seguro de suas convicções revolucionárias se vê aprisionado na figura patética do burguês inseguro, a exigir de Anne provas inverossímeis de fidelidade.

"Um Ano Depois" cobre os acontecimentos pessoais e gerais da França entre maio de 1968 e maio de 1969. Um ano em que a revolução passou da festa à depressão, deixando atrás de si transformação radical (nos costumes) e triunfo conservador (na política).

Transitando das questões pessoais às turbulências gerais com simplicidade e desenvoltura de verdadeira escritora, Wiazemsky compõe um retrato vibrante e sintético daquele momento único, do qual consegue apreender tanto a vitalidade como as contradições.

Seu relato, por fim, longe de comprometer o então marido (o casamento começa a acabar em 1969, justamente) busca mostrar a complexidade, os fantasmas e até a imaturidade de um grande artista envolvido até a cabeça num momento em que tudo parecia prestes a mudar. E, com efeito, mudava: aqui já se pode detectar o Godard cada vez mais solitário que começou a existir então.

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