Descrição de chapéu Livros Flip

Rótulo de Hilda Hilst como eremita obscena só dificultou acesso à sua obra

O mundo para o qual ela escrevia não era receptivo à arte poderosa de uma mulher forte

Marcella Franco
São Paulo

Pode ser difícil de acreditar, mas Hilda Hilst não estreou no mundo já velha, com 70 anos de idade. Parece absurdo, talvez, mas é um lembrete importante, este, ao se considerar o fato de que, na grande maioria das fotos escolhidas para ilustrar menções à escritora —e, talvez por consequência disso, também no imaginário em geral— ela apareça enrugada, macilenta, de olhos caídos e cabelos brancos.

Hilda, natural de abril de 1930, nasceu, cresceu, se desenvolveu, e cumpriu todo o ciclo dos seres vivos saudáveis, como previsto nos mantras da Biologia. No entanto, algo nos leva a insistir na imagem da obscena senhora, dedo do meio erguido em ofensa para a câmera, sempre que o assunto é sua obra. Mas por quê?

 
A escritora, poeta e dramaturga Hilda Hilst em 1952 - Folhapress

No posfácio que assinou na coletânea hilstiana “da poesia” (Companhia das Letras, 2017), o também escritor Victor Heringer dizia que a imagem de uma mulher “meio louca, eremita, arredia, indomesticável” que se faz de Hilda diz mais sobre quem tenta encerrá-la em rótulos do que sobre ela própria.

E, completa Heringer, tamanho reducionismo só terminou por dificultar o acesso à obra de Hilda —o que corroborava seu maior e mais famoso pesadelo, o de não ser lida. Ela, por sua vez, deu depoimentos em que enxergava um problema ainda maior, que ultrapassava o nível pessoal. Para Hilda, sempre houve um grande preconceito contra a mulher escritora.

Se hoje elas são celebradas e reconhecidas, inclusive quando também abraçam gêneros tão específicos como a poesia erótica, o mundo para o qual Hilda Hilst escrevia não era dos mais receptivos à arte impecável e poderosa de uma mulher linda, brilhante, forte —e jovem.

“Presságio”, sua estreia oficial, aconteceu em 1950, quando a escritora tinha meros 20 anos. Continuou produzindo em 1951, 1955, 1959, ao mesmo tempo em que se esbaldava, livre e sem recato, nas noites paulistanas. As fotos da época (sim, elas existem) mostram Hilda metida em vestidos tomara que caia, portando estolas, pérolas, drinques, tabaco.

E, ainda assim, insistimos nos retratos da velhice e da reclusão na Casa do Sol, exílio para o qual ela mesma se transferiu e que serviu convenientemente à sociedade pudica da época, que não sabia onde enfiar uma força daquele tamanho, avassaladora, com o poder de questionar o lugar da mulher na literatura.

É hora não só de se ler seus mais de 20 volumes de poesia, suas mais de 10 ficções, suas oito peças de teatro, consertando a fama de não lida, mas também de mudar a cara de Hilda Hilst no imaginário nacional. Superar o medo da mulher livre e estampá-la em reedições e homenagens como a da Flip 2018, em cujo convite Hilda aparece de queixo erguido , sensual e imprescindível.

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