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Personagens de John Banville são monstros admiráveis

Em 'O Livro das Evidências', que ganha nova edição, cientista reproduz circunstâncias que o levaram ao crime

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John Banville às margens do rio Liffey, em Dublin, Irlanda -  Derek Speirs - 19.out.2005/The New York Times

O Livro das Evidências

  • Preço R$ 44,90 (240 págs.)
  • Autoria John Banville
  • Editora Globo Livros, selo Biblioteca Azul
  • Tradução Fabio Bonillo

Em "Um Assassino Entre Nós", Ruth Rendell (1930-2015) escreveu uma das mais famosas aberturas da literatura criminal. Ela simplesmente entrega quem é o assassino na primeira linha: "Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever". E joga para o leitor uma isca perfeita: como um absurdo desse pôde acontecer?

Não à toa, Rendell adorava "O Livro das Evidências", de John Banville, que acaba de ganhar nova tradução entre nós (a primeira, de 2002, saiu pela Record com o título de "O Livro das Provas").

Logo nos parágrafos iniciais o narrador, que está preso, protesta contra "o cheiro de sêmen por toda a parte". O que interessa, de novo, é a pergunta: como ele chegou ali?

O livro se arma como uma confissão não confiável de toda: "Jura dizer a verdade, toda a verdade e nada além da verdade? Não me faça rir".

O cientista Freddie Montgomery reproduz as circunstâncias que o levaram a cometer dois crimes: roubar uma pintura holandesa do século 17 e assassinar uma mulher que o pegou em flagrante.

Aos poucos o leitor percebe que o relato em primeira pessoa pode ser pura especulação, pela quantidade de pistas falsas e pelo caráter dúbio de quem narra.

Montgomery se apresenta como um bon-vivant que, depois de receber uma herança, vive em ilhas do Mediterrâneo bronzeando-se e bebendo gim ao lado da mulher e do filho. Mas no fundo é um monstro.

Um monstro admirável como outros que compõem a galeria dos personagens de John Banville: o espião Victor Maskell de "O Intocável", o acadêmico Axel Vander de "Sudário", o pintor Oliver Orme de "O Violão Azul", seres cheios de charme, mas inadaptados ao mundo.

A certa altura Montgomery reflete: "Eu nunca de fato me acostumei a estar neste planeta. Às vezes penso que nossa presença aqui se deve a um deslize cósmico, que tínhamos sido designados para outro planeta, com outros arranjos, e outras leis, e outros e severos céus".

A etiqueta de pós-moderno não veste bem em Banville, cujo modelo de aspiração é Henry James. Mas ele se permite algumas piscadelas metaficcionais: citações a "O Homem Sem Qualidades", de Musil, e "O Estrangeiro", de Camus.

O autor põe o estilo em primeiro lugar, e a história vem a reboque. Seu toque de Midas é a frase rítmica, plástica, detalhista. Um romancista fascinado pela arte figurativa, que aparece com insistência em suas obras. (Banville declarou que, se tivesse talento, gostaria de se arriscar numa carreira de pintor.)

O quadro pelo qual o narrador perde a cabeça —"Retrato de uma Mulher com Luvas", atribuído a Rembrandt, Frans Hals ou Vermeer— não causa uma impressão pictórica tão forte quanto o momento de confusão em que se dá o roubo:

"Impressionou-me que a perspectiva dessa cena estava errada de alguma forma. As coisas não pareciam retroceder tal como deveriam, mas sim serem dispostas perante mim —a mobília, a janela aberta, o gramado e o rio e as montanhas longínquas— como se não estivessem sendo observadas mas estivessem elas mesmas observando, mirando um ponto de fuga aqui, dentro do cômodo".

O clímax do romance é o homicídio. Banville consegue passar para o papel a lição de Alfred Hitchcock no filme "Cortina Rasgada" (1966): uma sequência de assassinato longa, o contrário do clichê que a mostra rápida e indolor. Uma prova de como é difícil, penoso e demorado matar uma pessoa. Ainda mais quando se usa um martelo dentro de um carro.

Publicado em 1989, "O Livro das Evidências", ao ser indicado para o Man Booker Prize, tornou o autor conhecido em sua Irlanda natal. Andando pela rua, ele quase foi atropelado por um ciclista que, ao se desculpar, disse: "Seu livro é foda!". Sua leitura é a melhor maneira de adentrar no terrível universo de John Banville.

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