A história de um governo corrupto, marcado por traições, conluios e desentendimentos, foi mote de uma das mais célebres ficções da dramaturgia ocidental, há quatro séculos. Mas bem poderia se encaixar num punhado de casos verídicos recentes.
A versão da Armazém Companhia para "Hamlet", que chega a São Paulo depois de uma temporada no Rio, parte do princípio que a podridão do reino da Dinamarca, pano de fundo da tragédia de Shakespeare, se arrastou pelos tempos, chegando até hoje.
O grupo se espelhou muito nas teorias do polonês Jan Kott, que em seu livro "Shakespeare Nosso Contemporâneo", de 1962, teoriza: "Hamlet" é como uma esponja, "que imediatamente absorve todos os problemas do nosso tempo".
Mas a Armazém não trata de atualizar o texto shakespeariano ou inserir referências contemporâneas. "Não houve necessidade de ser literal, e isso foi o mais interessante para nós. Queríamos fazer teatro, não um manifesto", afirma o diretor Paulo de Moraes.
Fora algumas mudanças de ordem, cortes e uma tradução moderna, de Maurício Arruda Mendonça —mais "direta e seca", de acordo com o encenador—, o texto de Shakespeare está lá, como no original.
Para Moraes, as palavras do bardo hoje espelham a sociedade atual, da conturbada política brasileira, ao governo Trump nos EUA. "O contexto histórico em que estamos inseridos acaba explodindo [na peça]. Durante o processo, a gente foi percebendo como 'Hamlet' representa a destruição da ordem estabelecida, um colapso desse tempo."
A mudança de perspectiva também se dá no protagonista, aqui interpretado por uma mulher, Patrícia Selonk. "Isso acaba reforçando um certo machismo embutido no personagem e remete à força do feminismo hoje", diz Moraes, lembrando do #EleNão, movimento organizado por mulheres contra o presidenciável Jair Bolsonaro (PSL).
"Hamlet absorve a loucura desse mundo em que ele está inserido e vira um cara muito violento", comenta Selonk.
A loucura é justamente um dos nortes da peça. Hamlet vê a morte repentina do pai, o rei Cláudio, e o príncipe passa a ter visões do patriarca, que lhe conta ter sido assassinado pelo próprio irmão para que este lhe tomasse o trono.
Para vingar o fratricídio, o príncipe se finge de louco, mas vai sendo tomado pela alucinação —e não mais se sabe quanto ele delira ou atua.
Na leitura da Armazém, é um espelho do mundo hoje, em que a loucura teria tomado conta e não haveria mais espaço para o fingimento.
Crianças interpretam sua visão de 'Hamlet' para o público adulto
Uma leitura um tanto inusitada da obra de Shakespeare foi feita pela diretora Elisa Ohtake e um grupo de cinco crianças, entre 11 e 12 anos.
"Peça para Adultos Feita por Crianças" parte das interpretações dos garotos para "Hamlet". "Comecei perguntando o que eles realmente entendem da história, a partir das experiências deles", conta a encenadora, que trabalhou por um ano e meio com o elenco.
Dali, questionam a identidade do ser humano, a vingança, a ideia de revolução, de mudanças dos tempos e "de que nada é superior a nada".
Michel Felberg, 11, conta que "já tinha ouvido as frases clássicas de 'Hamlet', como 'ser ou não ser. Mas não sabia que era tão profundo". "Vi a maneira como o Shakespeare fala do ser humano, da alma humana, e me apaixonei por isso."
Em cena, os garotos alternam trechos da peça original com comentários próprios sobre as situações e também alguns momentos de descontração, meio anárquicos, que o grupo chama de "brincadeiras contra a chatice" —de uma dança a tomar banho de refrigerante. O preceito, explica Michel, é: "Se um adulto é muito, muito chato, como a gente melhora ele?".
Ao fim, também há uma participação do ator Paulo Cesar Pereio, que faz o inverso proposto pelas crianças e interpreta trechos da peça que ele não compreende muito bem.
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