Descrição de chapéu

'Em Chamas', baseado em conto de Murakami, é mais literatura e menos ação

Sul-coreano Lee Chang-dong cria longa de potência metafórica que reverbera aqui e agora

Cássio Starling Carlos

Em Chamas (Beoning)

  • Quando Mostra: Sex. (26), às 20h30, na Caixa Belas Artes; sáb.(27), às 16h
  • Classificação 16 anos
  • Produção Coreia do Sul, 2018
  • Direção Lee Chang-dong

A breve imagem do fumo que abre "Em Chamas" prenuncia a trama de apagamentos que o filme traça enquanto segue o entrecho, aparentemente banal, de um triângulo amoroso.

Jong-soo, aspirante a escritor, Hae-mi, meio dançarina, meio mímica, e Ben, jovem rico e cínico, formam um trio reunido por amor, ciúme e inveja e que carrega, sem querer, o fardo da história de sua sociedade.

O diretor sul-coreano Lee Chang-dong usa como ponto de partida o conto "Queimar Celeiros", do escritor japonês Haruki Murakami, expandido-o na forma de um longa com quase duas horas e meia. A duração pode parecer excessiva, mas é decisiva para nos conduzir pelos meandros da obsessão amorosa e pela transição entre gêneros que intensifica o impacto do filme.

O cinema de Lee não segue tendências. Sua câmera não precisa tremer para sugerir urgência ou intensidade nem sua opção por cenas longas e sem cortes visa provocar efeitos plásticos contemplativos.

A forma dilatada, lenta sem ser arrastada, que o cineasta adota está mais próxima da literatura, com seus tempos de espera e de atenção, do que do cinema da ação incessante que mais consumimos hoje.

A inspiração literária, aqui como em "Poesia" (2010), longa anterior do cineasta sul-coreano, influencia sobretudo os fluxos do protagonista, ao qual estamos colados da primeira à última cena. Como os lapsos do mal de Alzheimer interferiam nas experiências da personagem de "Poesia", a imaginação febril de Jong-soo nos impede de distinguir o que é factual do que pode ser alucinação.

Essa possibilidade narrativa encontra no cinema seu veículo mais apropriado, na medida em que a fluidez das imagens nos impede de retê-las, lançando sobre o espectador a sombra da dúvida.

"Em Chamas" faz de Hae-mi o centro dessa crença no impalpável, carregando a personagem feminina com sucessivos sinais de apagamento. Primeiro, ela dorme na mesa ao fim do primeiro encontro. Em seguida, convence Jong-soo a cuidar de um gato que evoca um trauma, relato que outros personagens põem em dúvida

Por fim, o sumiço da personagem no meio da história lança a segunda parte do filme numa vertigem que nos consome até a última cena.

O fluxo passa desse modo do drama psicológico ao thriller, que por sua vez conduz ao mistério metafísico. Ao longo desse experimento narrativo, Lee Chang-dong traça um painel conciso das diferenças sociais e da divisão da Coreia como duas metades da velha maçã. Ao mesmo tempo, cria um daqueles filmes cuja potência metafórica reverbera aqui e agora.

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