Três pessoas estão sentadas sobre o que parecem ser cocôs boiando. Um dos personagens suplica: “Podemos passar o meu aniversário sem falarmos no Brasil?”.
A cena compõe um dos cartuns que André Dahmer, 44, apresenta a partir desta quarta (20), na 9ª Arte Galeria, em São Paulo, casa especializada em histórias em quadrinhos, cartuns e linguagens afins.
Em cartaz estarão dezoito trabalhos originais e cinco gravuras em serigrafia numeradas e assinadas pelo carioca, autor de tiras e séries como “Malvados” e presença diária na Ilustrada —ele também publica em veículos como a revista Piauí e já recebeu prêmios como o Trófeu HQMix (quatro vezes).
Boa parte das produções é inédita, e a maioria foi produzida em 2019; daí que a curadoria guarde forte relação com as mais recentes manchetes jornalísticas.
Dono de estilo ácido, pungente e conectado às mazelas políticas e sociais do Brasil, Dahmer adota o sarcasmo para agradecer ao presidente Jair Bolsonaro pela inspiração, pois “material para fazer humor não falta”.
Para o autor, o quadrinho mencionado reflete uma inversão histórica na relação do brasileiro com a política.
“Hoje é difícil não conversar sobre Brasil. A minha geração lutava para fazer as pessoas falarem sobre política, mas agora estou querendo é que se calem!”, diverte-se. “A internet reflete a desordem psicológica, as pessoas estão agressivas.”
E como não perder a ternura e o humor em meio à brutalidade? Qual a motivação?
“Certamente não é a raiva. Por outro lado, se eu falar que desenho para construir um mundo melhor, também é mentira; quadrinho não muda o mundo, quem o faz são as pessoas no poder. Nós, artistas, comentamos a realidade e apontamos caminhos.”
Denunciar a bagunça do mundo é também uma maneira de organizar o caos interior, afinal.
“O desenho me dá um sossego, uma paz. Parece muito com meditação e práticas que esvaziam a cabeça. Então tem um lado meio egoísta, de arrumar a desordem interior.”
Prestes a iniciar sua terceira mostra na cidade, após uma individual em 2018 e uma coletiva em 2015, Dahmer se anima com o que vê como uma mudança de percepção de público, crítica e mercado a respeito do valor do cartum.
“Sinto que está mudando a visão tradicional do quadrinho como um ofício menor e menos valorizado. Quem hoje não gostaria de ter um [Saul] Steinberg (1914-1999), um [Robert] Crumb? É um sinal de respeito pela profissão; é arte, são artistas.”
Antes de abrir sua exposição, o cartunista participa de bate-papo no Sesc Pompeia, nesta terça (19).
É preciso, afinal, aproveitar a viagem; Dahmer é célebre pelo medo de viajar de avião, e não deixa de rir de si mesmo. “A frequência faz com que você tenha menos medo, mas aumenta a chance de morrer, né?”
Ele estará com a jornalista Gabriela Franco e com Fabiane Langona, também cartunista e diariamente publicando na Folha. Em debate, os limites do humor —não só nas tiras e nos quadrinhos.
“A fronteira é desenhar Maomé, porque aí te matam [risos]. Embora o humor seja por natureza brutal e perverso, é possível fazer rir sem humilhar, usar como ferramenta de denúncia. Como disse Millôr [Fernandes] (1923-2012), 'Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira pra matar'.”
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