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Cinema

'Albatroz' é ruído que pode perturbar e inspirar o cinema brasileiro

Longa tem referências de 'A Estrada Perdida', clássico americano de David Lynch

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Albatroz

  • Classificação 14 anos
  • Elenco Alexandre Nero, Andréa Beltrão, Maria Flor, Camila Morgado, Gustavo Machado
  • Produção Brasil, 2018
  • Direção Daniel Augusto

O cinema dos Estados Unidos nos anos 1990 era marcado pelo conservadorismo narrativo, até que David Lynch jogou tudo para o alto. 

"A Estrada Perdida" (1997) embaralhava realidade, sonho e alucinação, levando o espectador a embarcar em tramas sobre as quais a origem não estava clara, tampouco o ponto de chegada. Foi um momento sublime do mistério das imagens. 

Embora não seja uma obra-prima como "A Estrada Perdida", o brasileiro "Albatroz" é um filme potente, que pode servir à produção ficcional do país como um ruído que perturba e inspira.

O filme se assemelha ao de Lynch em aspectos centrais, o que é uma demonstração da aposta arrojada do diretor Daniel Augusto e do roteirista Bráulio Mantovani.

Uma sinopse possível de "Albatroz"? O fotógrafo Simão (Alexandre Nero) é casado com Catarina (Maria Flor), mas se apaixona pela atriz judia Renée (Camila Morgado), com quem viaja a Jerusalém. Num restaurante da cidade, ele registra um ataque terrorista frustrado. As imagens lhe rendem um prêmio importante e críticas pela opção por fotografar o atentado em vez de tentar evitá-lo.

Na volta, Simão vê o casamento com Catarina entrar em crise. Surge Alicia (Andréa Beltrão), uma paixão de juventude, e as memórias aprofundam as confusões amorosas.

A bem da verdade, os dois parágrafos acima são uma interpretação possível (e um tanto empobrecedora), menos uma sinopse, que supõe uma leitura lógica do filme.

"Albatroz" é uma sucessão de enigmas, mas a nossa fruição não depende da capacidade de desatar esses nós. Ao manter a realidade sempre escorregadia, o filme não nos convida a ser compreendido em sua plenitude. Terá prazer quem se dispuser a viajar pelos delírios de "Albatroz".

A influência de "A Estrada Perdida" é patente. Aparece inclusive em minúcias. Renée, a atriz com quem Simão se envolve, é também o nome da personagem de Patricia Arquette no filme de Lynch. 

Num jogo de personalidades intercambiáveis, ambas aparecem ao longo dos filmes ora com os cabelos loiros, ora morenos. Mas seria um erro rebaixar "Albatroz" a um clone de "A Estrada Perdida". O filme brasileiro cultiva caminhos particulares, como o diálogo com a neurociência e com a música de Walter Franco, um dos grandes nomes da vanguarda da canção brasileira.

Autor de roteiros de longas como "Cidade de Deus" (2002) e "Tropa de Elite" (2007), Mantovani atinge em "Albatroz" seu resultado mais engenhoso. Constrói um fascinante personagem central, Simão, que fragmenta a vida em imagens congeladas e vê cores quando ouve música, uma percepção associada à sinestesia.

Por mais relevante que seja, especialmente numa obra como essa, que suspende os sentidos pré-estabelecidos, o roteiro se mantém como uma das etapas do processo do filme. É preciso, portanto, reconhecer a ousadia e o talento na direção de Daniel Augusto, na fotografia de Jacob Solitrenick e na montagem de Fernando Stutz.

"Albatroz" se preocupa ainda em botar os pés no tempo presente, principalmente ao retratar avanços totalitários em meio ao redemoinho de fantasias de Simão. A intenção é louvável, mas o filme incorre em abordagens às vezes caricaturais e datadas.

Não é um tropeço, contudo, que desmereça a obra. O ano mal começou, mas "Albatroz" já desponta como um dos grandes filmes brasileiros de 2019. 

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