Após versão feminista de 'Mulheres', roda de samba feminina prepara disco

Samba Que Elas Querem vai gravar inéditas de compositoras e ambiciona fazer primeiro show em SP

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Giselle Sorriso, Karina Neves, Angélica Marino, Bárbara Fernandes, Silvia Duffrayer, Cecília Cruz, Mariana Solis e Julia Ribeiro, integrantes do grupo Samba Que Elas Querem, sucesso no Rio de Janeiro com versão feminista de "Mulheres", composição de Toninho Geraes celebrizada por Martinho da Vila
Giselle Sorriso, Karina Neves, Angélica Marino, Bárbara Fernandes, Silvia Duffrayer, Cecília Cruz, Mariana Solis e Julia Ribeiro, integrantes do grupo Samba Que Elas Querem - María Magdalena Arrellaga/Divulgação
São Paulo

Nos anos 1990, quando Martinho da Vila fez da canção “Mulheres” um de seus maiores sucessos, era normal falar em mulheres “desequilibradas, confusas, de guerra e de paz”.

Não é mais.

Assim como piadas sobre negros, gays e mulheres eram toleradas e hoje são combatidas, ficou feio para a composição de Toninho Geraes, tema de paródia do grupo Samba que Elas Querem, dos versos:

“Mulheres cabeça/ e muito equilibradas/ Ninguém tá confusa/ não te perguntei nada”.

Não é uma denúncia mas uma reflexão, diz Mariana Solis, 30, responsável pelo agogô e pela caixa no grupo.

“Toninho foi muito carinhoso; é um cara que a gente admira, tocamos várias dele. Mas, por mais que a versão original seja maravilhosa, não dá mais para aceitar a reprodução de certos comportamentos”, diz.

Formado por oito instrumentistas e cantoras do Rio de Janeiro, o Samba que Elas Querem nasceu há dois anos.

Algumas integrantes, como Solis e a cavaquinista Cecília Cruz, 28, já tocavam em rodas —nas quais eram exceções— e sonhavam em formar um grupo só de meninas.

Sobreveio um empurrão da cantora e pandeirista Silvia Duffrayer, 33. “Ela chamou amigas para tocarem no aniversário dela, mas algumas não puderam ir; de última hora, consultou a Cecília, que citou nosso plano”, diz Solis.

Foi o primeiro show e o dia em que a aniversariante sugeriu o intuitivo nome do grupo.

Meses depois, Duffrayer e a cantora Doralyce Gonzaga tiveram a ideia de escrever uma versão de “Mulheres” para divulgar no Dia da Mulher do ano passado.

Filmado por alguém no público, esse primeiro registro acumula quase 2,5 milhões de reproduções e, depois, ganhou um videoclipe no qual a letra foi atualizada com homenagem à vereadora assassinada ​Marielle Franco.

Completam o grupo Giselle Sorriso (surdo e repique de anel), 32; Bárbara Fernandes (violão e voz), 34; Angélica Marino (tantã, reco-reco e pandeiro), 29; Júlia Ribeiro (voz, conga e caixa), 28, e Karina Neves (flauta e percussão), 32.

A premissa era que não se repetisse, no futuro, o que acontece com as sambistas de hoje, que cresceram sem ter em quem se espelhar. Para além da paródia, reflete Solis, a roda feminina confronta o machismo.

“Nossas referências vieram sempre de homens. Até havia grupos de mulheres, como o Moça Prosa, mas ficava uma ideia de que somos aceitas apenas como cantoras ou dançando com pouca roupa”, ela diz, citando veteranas como Iranette Ferreira Barcellos, 78, a tia Surica da Portela. “Elas abriam seus quintais para as rodas, mas no começo ficavam só na cozinha”.

Mas a musicista vê sinais de inflexão nos estereótipos, como o samba-enredo deste ano da Mangueira, que critica o racismo e diz que “chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”.

O grupo tem tido agenda cheia, sem contar os trabalhos de integrantes em outras rodas ou com outros artistas. No Carnaval, serão ao menos cinco shows no Rio.

Depois, a ideia é instituir uma roda mensal, mas faltou tempo para levantar esse repertório, em parte graças aos shows que elas vêm fazendo com a cantora Teresa Cristina.

As artistas ambicionam agendar um primeiro espetáculo na capital paulista —será a oportunidade para fazer intercâmbio com rodas paulistanas femininas, como o Samba de Dandara, diz Mariana.

E, ainda neste ano, o Samba que Elas Querem espera gravar suas primeiras canções —todas escritas por mulheres.

“As meninas são desde pequenas condicionadas para competir na aparência ou para achar que não têm potencial para certos trabalhos", diz Solis. "Isso é um desserviço; a gente chega quebrando tudo, mesmo.”

Samba que Elas Querem

  • Quando Baile da Sorte - Clube Boqueirão - r. Jardel Jércolis, 50, Rio de Janeiro. Sáb. (9): 22h. Ingr.: R$ 30 a R$ 40, sympla.com.br. 18 anos. Praça Saens Peña, Rio. Dom. (10): 19h. Grátis. Livre

Hit de Martinho da Vila ganha nova lírica

A canção original
​(Toninho Geraes; interpretação: Martinho da Vila)

Já tive mulheres
de todas as cores
De várias idades
de muitos amores
Com umas até
certo tempo fiquei
Pra outras apenas
um pouco me dei

Já tive mulheres
do tipo atrevida
Do tipo acanhada
do tipo vivida
Casada carente
solteira feliz
Já tive donzela
e até meretriz

Mulheres cabeças
e desequilibradas
Mulheres confusas
de guerra e de paz
Mas nenhuma delas
me fez tão feliz como você me faz

Procurei
em todas as mulheres a felicidade
Mas eu não encontrei
e fiquei na saudade
Foi começando bem mas tudo teve um fim

Você é
o sol da minha vida a minha vontade
Você não é mentira
você é verdade
É tudo que um dia eu sonhei pra mim

A versão feminista
(Doralyce Gonzaga e Silvia Dufrayer; interpretação: Samba que Elas Querem)

Nós somos mulheres
de todas as cores
De várias idades,
de muitos amores
Lembro de Dandara,
mulher foda que eu sei
De Elza Soares,
mulher fora da lei

Lembro Marielle,
valente, guerreira
De Chica da Silva,
toda mulher brasileira
Crescendo oprimida
pelo patriarcado
Meu corpo, minhas regras
Agora, mudou o quadro

Mulheres cabeça
e muito equilibradas
Ninguém tá confusa,
não te perguntei nada
São elas por elas
Escuta esse samba
que eu vou te cantar

Eu não sei
porque tenho que ser a sua felicidade
Não sou sua projeção
Você é que se baste
Meu bem, amor assim
quero longe de mim

Sou mulher,
sou dona do meu corpo
E da minha vontade
Fui eu que descobri
Poder e Liberdade
Sou tudo que um dia eu sonhei pra mim

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