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Filme com cenas raras conta história de festival hippie no interior de São Paulo

  'O Barato de Iacanga', destaque do É Tudo Verdade, mostra shows de Gil, Alceu e João Gilberto  

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Público em show no Festival de Águas Claras, retratado no longa 'O Barato de Iacanga', de Thiago Mattar

Público em show no Festival de Águas Claras, retratado no longa 'O Barato de Iacanga', de Thiago Mattar Acervo pessoal

São Paulo

Os Fuscas paravam no meio da grama e deles saltavam hippies desgrenhados em shortinhos, biquínis e muitos já sem roupa alguma. No Woodstock brasileiro, que tomou forma numa cidadezinha do interior paulista, chá de cogumelo vinha disfarçado em garrafa de café e banho de lama rolava à beira do rio Tietê. 

O documentário “O Barato de Iacanga”, destaque do festival É Tudo Verdade, recupera uma história perdida na memória de muitos dos que a viveram —por ação dos anos ou de substâncias alucinógenas. 

O ex-mutante Arnaldo Baptista, fotografado repousando entre caixas de som, não guarda lembrança, pelo que diz a este repórter. Marisa Orth é outra: “Nossa, faz tempo.”

O filme de Thiago Mattar pode ajudar a clarear as coisas. Conta como um rapaz de 22 anos, Antonio Cecchin Jr., o Leivinha, atraiu um contingente de bichos-grilos para a fazenda de sua família, em Iacanga, a 378 km de São Paulo.

Com edições entre 1975 e 1984, os festivais de Águas Claras se firmaram como a grande convenção de desbundados nos anos da ditadura militar.

O diretor de 30 anos conta que quis fazer o documentário depois de descobrir que o pai havia frequentado o evento. “Até então, Iacanga para mim era aquela cidadezinha onde as pessoas passavam o dia em cadeira de balanço.”

Não deixa de ser. Mattar costura depoimentos de moradores que se viram surpreendidos pela vinda de gente alternativa e dada a “muita depravação”, como diz uma delas.

“O público era formado por andarilhos, estradeiros, malucões”, diz o documentarista. “Não tinha hippie de butique. Era genuíno, era a reunião de tribos que não tinham outra forma para se encontrarem.”

Arnaldo Baptista nos bastidores de show no Festival de Águas Claras, retratado no longa 'O Barato de Iacanga', de Thiago Mattar
Arnaldo Baptista nos bastidores de show no Festival de Águas Claras, retratado no longa 'O Barato de Iacanga', de Thiago Mattar - Divulgação

A primeira edição, em 1975, ainda no rescaldo psicodélico da década anterior, reuniu bandas hoje pouco memoráveis de rock progressivo e algo em torno de 10 mil pessoas. 

A imprensa não se empolgou. Esta Ilustrada ralhou contra a união de “jovens e muitos ‘freaks’”. Usou aspas de ironia na palavra festival, chamou as acomodações de “prisões de guerra”, e a comida, de “ração que nem suínos engoliriam”.

De qualquer forma, os militares se assustaram tanto que o evento só pôde se repetir em 1981, com uma embalagem mais brasileira —uma forma de iludir o regime e desviar o foco daquilo que o governo acreditava ser um encontro de roqueiros subversivos.

Foi quando Raul Seixas, Alceu Valença, Jards Macalé, Jorge Mautner e Luiz Gonzaga deram as caras. Dois anos depois, um feito ousado: escalar João Gilberto. Recheado de anedotas, o filme conta como o compositor quis dirigir até a fazenda e ficava encantado com o barulho do motor do carro (“olha que coisa linda!”).

Na última edição, em 1984, desfecho melancólico. Uma tempestade arruinou a estrutura precária, impedindo Luiz Melodia e Clementina de Jesus de subirem ao palco. E marcas de cerveja já estavam de olho no potencial comercial daqueles shows, prenúncio do que, no ano seguinte, daria origem a eventos caça-níqueis como o Rock in Rio.

Entre as preciosidades do filme estão registros raros do autor de “Chega de Saudade” tocando “Wave” madrugada adentro e, bem-humorado, sorrindo para o público.

A busca por imagens dos shows contribuiu para que a produção do filme se arrastasse por dez anos. Ter autorização para incluir as filmagens de João Gilberto, envolto em imbróglio financeiro e brigas familiares, obrigou o diretor a ficar de tocaia em frente ao prédio do pai da bossa nova, no Rio de Janeiro. 

Raul Seixas se apresenta em show no Festival de Águas Claras, retratado no longa 'O Barato de Iacanga', de Thiago Mattar
Raul Seixas se apresenta em show no Festival de Águas Claras, retratado no longa 'O Barato de Iacanga', de Thiago Mattar - Irmo Celso /Divulgação

As filmagens de Gil, em 1981, falando em guerra cultural antes de emendar “Não Chores Mais” soam atuais e reverberam ante outro avanço conservador sobre os costumes.

Nos Estados Unidos, ocorre em agosto uma nova edição do Festival de Woodstock, nos dias do cinquentenário. Será numa pista de corrida no interior do estado de Nova York, e não numa fazenda como a de Bethel, que sediou o evento. 

A escalação tampouco podia ser mais equivocada. Mistura o pop hedonista de Miley Cyrus, a nostalgia pastiche de Greta Van Fleet e o bom-mocismo radiofônico de Imagine Dragons —o oposto da subversão de um Jimi Hendrix tocando o hino americano em sua guitarra no ano em que mais de 11 mil de seus compatriotas morreram no Vietnã.

Iacanga também mudou. A fazenda foi vendida e virou um laranjal onde só se entra desinfetado. Mas o diretor conta que não é difícil se encontrar por ali alguns suvenires de Águas Claras enterrados.

MOSTRA CELEBRA JORNALISMO E ABORDA ONDA CONSERVADORA

Mais importante mostra nacional de documentários, o Festival É Tudo Verdade começa no dia 4 de abril, em São Paulo, e no dia 8, no Rio de Janeiro.

Nas duas cidades, os filmes de abertura se impõem como manifestos em prol do jornalismo (“Mike Wallace Está Aqui”) e das artes (“Memórias do Grupo Opinião”) em tempos em que ambos estão emparedados por governos. 

“Encaro abertura de festival como um editorial de jornal”, diz Amir Labaki, fundador do É Tudo Verdade. “São filmes que espelham a seleção.”

Mike Wallace, retratado na obra que abre o braço paulistano da mostra, é o jornalista que por 37 anos esteve à frente do programa 60 Minutes e recebeu em sua bancada algumas das mais importantes figuras do século passado. 

Zé Keti, Nara Leão e João do Vale em ensaio do espetáculo Opinião
Zé Keti, Nara Leão e João do Vale em ensaio do espetáculo Opinião - Divulgação

Morto em 2012, ficou famoso pela contundência de suas perguntas. “Imprensa é isso”, afirma Labaki. “Ela é valiosa quanto mais incômoda for.”

No Rio, o filme de Paulo Thiago recupera a trajetória do carioca Grupo Opinião, amálgama de música e teatro que teve a contribuição de Ferreira Gullar, Nara Leão e Oduvaldo Vianna Filho na oposição artística à ditadura militar.

“É um filme que não celebra só a faceta de resistência, mas a importância criativa daquele movimento”, segundo diz o diretor do É Tudo Verdade.

A seleção reflete as turbulências contemporâneas. Dois eixos cruzam a programação. Um é o que Labaki chama de “expansão das doutrinas autoritárias”, o outro, interligado, é o impacto da crise migratória.

Ex-estrategista de Trump, Steve Bannon é perfilado em “A Beira”. “Reconstruindo Utoya” fala do rescaldo do atentado cometido por extremista de direita na Noruega. E “Hungria 2018”, da campanha de Viktor Orbán, abastecida pelo sentimento xenófobo.

Entre nacionais, “Cine Marrocos”, de Ricardo Calil, se debruça sobre sem-teto e imigrantes no centro de São Paulo.

Neste ano, a programação tem 66 filmes, 11 a mais do que no ano passado, e com quase o mesmo orçamento (R$ 2,2 milhões), que vem sendo reduzido desde que estatais passaram a rever o apoio que davam a eventos culturais.

É Tudo Verdade
De 4 a 14 de abril, no CCSP, IMS Paulista, Itaú Cultural e Sesc 24 de Maio (São Paulo); de 8 a 14 de abril, no Estação Net Botafogo e IMS Rio (Rio). Programação em etudoverdade.com.br

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